16 novembro 2016

 

Homenagem a um portuense ilustre


 

Esta é uma pequena homenagem ao Dr. Miguel Veiga, que ontem, dia do seu funeral, não pude escrever.

Gostava daquele homem, sinceramente, aborrecendo-me, todavia, aquelas loas encomiásticas e mitificadoras de muitos que procuram adornar a sua figura com a aura dos excelsos.

Gostava do seu apego às liberdades cívicas, da sua raiz genuinamente “tripeira”, no que esta tem de melhor e durável, do seu espírito de independência ou rebeldia, cultivado com acinte (até porque suportado pelo património familiar e pelos réditos de uma profissão liberal de prestígio que herdara do pai), do seu gosto pela cultura, pelas artes em geral e pela literatura em particular, do visível prazer que manifestava na intervenção cívica, cultural e política, daquele seu modo simultaneamente formal (ou altamente polido) e afectuoso com que tratava as pessoas com quem se relacionava, do seu gosto requintado, a começar pelo cuidado meticuloso com a sua figura.

O Dr. Miguel Veiga (Miguel Luís Kolback da Veiga) era aquilo que se chama (ou chamava) um burguês ilustrado, nascido em berço de ouro (podia ser e não sei se não terá sido uma das referências de que se serviu ao escrever o livro) uma das personagens de Os Meninos de Ouro, de Agustina Bessa-Luís, portador de uma alegria estridente de viver, amante dos prazeres da vida, tendo-se mantido celibatário até muito tarde (até à idade de ser avô com netos crescidos), filho único que não deixou descendentes, com a sua costela jacobina.

Conheci-o quando estava a fazer o estágio para juiz, em 1977. Então, decidi fazer um trabalho sobre liberdade de imprensa (tema inédito e ainda um bocado suspeito nos meios da velha guarda judicial). Vai daí, resolvi ir ter com o Dr. Miguel Veiga, dando-lhe conta do meu projecto e pedindo-lhe  ajuda, nomeadamente no  campo bibliográfico, tendo sido ele um dos deputados à Assembleia Constituinte com intervenção marcada nessa matéria. O Dr. Miguel Veiga, ainda esplendoroso nos seus quarenta anos, desaparecia por detrás de uma secretária repleta de livros, e as paredes do escritório estavam literalmente forradas de quadros (entre eles, muitas gravuras da Cooperativa Gravura, de Lisboa, de que também me tinha feito  sócio pela mão do nosso colega e meu amigo Dr. Gonçalves da Costa). Com uma afabilidade tocante, o Dr. Miguel Veiga logo me emprestou uma série de livros e dispensou-me os dois grossos volumes das Actas da Assembleia Constituinte. Ficamos amigos, mas amigos com certa cerimónia, pese embora nos encontrarmos frequentemente e termos participado, lado a lado, em seminários e colóquios, nomeadamente da iniciativa da Alta Autoridade Para A Comunicação Social (de quando em quando, o Presidente da Alta Autoridade vinha ao Porto e convidava-nos para jantarmos – jantares que incluíam o Dr. Rui Osório, padre e jornalista do Jornal de Notícias, actualmente cónego e pároco da freguesia da Foz).

A última vez que o vi foi em circunstâncias e local inesperados – na piscina do Clube Fluvial Portuense. Estava eu a vestir-me para vir embora, quando, no lado oposto àquele em que me encontrava, ouvi uma voz quase em surdina: “Senhor Conselheiro, Senhor Conselheiro” (nunca consegui fazer com que ele “dobrasse a língua” e me tratasse simplesmente pelo nome, ou, vá lá!, pelo vulgar Dr.). Nem queria acreditar. Estava sentado num banco, fragilizado, com um jovem a ajudá-lo a vestir-se. Embaraçado pelo tratamento que assim me desnudava perante o, felizmente, escasso número de frequentadores presentes, e envergonhado por não o ter reconhecido logo, abeirei-me dele e, tolhido pela emoção, não disse quase palavra, reservando para mim as interrogações que a situação suscitava.

Dias antes de falecer, ocorreu-me pedir a algum amigo comum e mais íntimo dele que me permitisse visitá-lo na sua casa. Já não fui a tempo, porque a morte, como tantas vezes acontece para gravame da nossa consciência, chegou primeiro.       





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