26 janeiro 2014

 

No reino da praxe


 

A minha geração quis acabar com a praxe, porque era medieval e caduca. Já o era no tempo de Eça de Queirós, que, num texto notável – «Santo Antero» - , depois inserto nas Notas Contemporâneas, se referia ao “praxismo poeirento” de Coimbra. Foi uma das nossas ilusões, termos pensado que tínhamos enterrado a praxe.

Afinal, ela voltou, como voltaram tantas outras coisa abomináveis, que pensávamos que tinham sido proscritas para sempre (ou para me exprimir de outro modo, muito em sintonia com a linguagem dialéctica da época, que tinham sido superadas). Não existe um para sempre.

Hoje sabemos que a História, para além de não ter uma teleologia, não segue uma linha em progressão contínua. A praxe não só voltou,  como se generalizou a todo o país, incluindo a capital, onde os espectáculos praxísticos, no seu cortejo macabro de capas pretas e  actos públicos de humilhação de uns tantos caloiros por meia dúzia de imbecis que passam por doutores, se incrustam nas ruas mais movimentadas de Lisboa. No recanto mais obscuro onde haja um estabelecimento de ensino baptizado de universidade, a praxe arvora a sua grande colher de pau, como um pendão com direito a território. Ou seja, os valores caducos e ultramontanos da praxe, com os seus signos macaqueados do praxismo coimbrão, estenderam-se a todo o país académico.

Mais grave do que isso: os desvios malsãos, sado-masoquistas, de dominação e de prepotência, assentando em personalidades patológicas, que a velha praxe já tinha tendência para fomentar, converteram-se no cânone reinante. Motivo para grande preocupação e para se encarar a sério o problema.

As imagens que a televisão tem transmitido de certos cerimoniais de praxe, a propósito do que aconteceu na praia do Meco e que ainda está por apurar, não são só revoltantes; causam agonia, aquele sentimento indefinível da repulsa mais funda e do enjoo insuportável perante a abjecção e o aviltamento. Fazem lembrar o Saló de Pier Paolo Pasolini.    

 

PS – A ser verdade a existência de associações para praticarem esses actos abomináveis da praxe, regendo-se pelo secretismo, o silêncio das vítimas e a vingança sobre os que faltam a esse dever, estamos perante associações criminosas, que devem ser investigadas como tal.  

    





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