26 janeiro 2014

 

A nova realidade e as palavras


Como disse a ministra das Finanças, temos agora uma nova realidade que não tem nada a ver com o que existia antes. O que existia antes é o passado de uma ilusão, para tomar de empréstimo o título de um livro de François Furet. Ora, para encararmos as coisas  como deve ser, para apreendermos o que realmente se tem passado, temos de começar pela linguagem, porque é por aí que tudo começa sempre. No princípio era o Verbo e é ao Verbo que temos de regressar. Por isso, vou reproduzir aqui um excerto de Hélia Correia do seu excelente ensaio “Com respeito às palavras”, publicado no suplemento “Ípsilon”, do jornal Público do passado dia 17 de Janeiro, cujo lema podia ser o desta frase desse ensaio: “(…) se aplicarmos ao hoje o alfabeto que aplicámos ao “ontem”, nada lemos”.

 

Vejamos:

Porque usam a palavra “austeridade”?

(…) Se há uma austeridade que castiga, é porque andamos na dissipação. Pressupõe-se que nós baixemos a cabeça sob o pecado que a palavra implica. Na verdade não há austeridade aqui. Há alguém empurrado para a miséria. É um processo involuntário, imposto por uma força superior, neste sentido de que não pode desobedecer-se. E imposto, no sentido também da inocência. Estamos a pagar o quê?, porquê? Em que momento é que prevaricámos? Foi a comprar mais um televisor, foi a escolhermos uma sala com lareira? Nós aprendemos, no devido tempo, que não podemos alegar ignorância da lei se a violámos, mas havia uma lei contra o conforto? Havia alguma lei que proibisse os filhos de viverem como tinham vivido os patrões dos seus pais? (…)

Mas, porque eu ando de transportes públicos, entenderei que a compra de um automóvel deve entregar o cidadão ao agiota? Estou a falar de pequeninas coisas, de minúsculas coisas que não chegam para lançar uma pessoa no inferno. O grande gasto o gasto vil, onde se oculta? Não, não nos pedem a austeridade. Eles exigem a pobreza e as suas consequências. Não, não fizemos mal. O que fizemos foi por fraqueza de desprevenidos ante a perversidade dos banqueiros. Não nos aliciavam com empréstimos? A bruxa má não estava a oferecer maçãs?

(…)    

Uma palavra envenenada estraga o mundo. Basta atentarmos em “democracia” (…)

Diz-se: o eleitor votou em liberdade. E essa liberdade manietou-o. Mais não pode fazer do que esperar pelo próximo processo eleitoral. E censuramos os abstinentes que nos respondem que “não vale a pena” – quando os factos lhe dão toda a razão.  Porque a democracia está  disforme, ainda que insistam em louvá-la.

Se a olharmos sem a ilusão, veremos quão irreconhecível se tornou. Veremos como finda o processo, ali onde devia ter início. Melhor dizendo: finda o que, em rigor, é perene. A palavra “escrutínio” significa, para nós, simplesmente, a contagem dos votos. Mas escrutínio não é apenas isso: é vigilância. É observação continuada, é um exame de comportamentos. Por alguma razão os ingleses, experientes neste assunto, ainda aplicam a expressão under scrutiny aos governantes. O sustentáculo da democracia está na possibilidade e na probabilidade de cada cidadão vir a ser eleito e, uma vez eleito, prestar contas. Essa é a superiordade da República e a sua beleza. O voto é só um expediente técnico que o espaçamento temporal vicia. (…) 





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