25 novembro 2013

 

Soares II


O gesto de Soares, ao tocar a rebate e reunir na Aula Magna gente muito diversificada,  representativa de variados sectores da sociedade portuguesa, da esquerda ao centro-direita, das organizações sindicais e do movimento dos reformados, bem como  algumas figuras importantes da cultura, do clero e  de militares que já não estão no activo, tem um significado de urgência cívica e política evidentes.

É preciso haver quem, com o carisma de Soares, pese embora a sua provecta idade e a sua notória debilitação física, consiga reunir o mais alargado leque de pessoas para despertar as consciências e mostrar que o caminho não é o da inevitabilidade do chamado “pensamento único” e do retrocesso que nos tem sido imposto.

Não estamos, efectivamente, numa ditadura, mas, como aqui escrevi há tempos, as saídas para a situação estão praticamente bloqueadas, a isso acrescendo a tentativa de bloqueio do Tribunal Constitucional, com as constantes pressões sobre os seus juízes no sentido de só poderem decidir chancelando as medidas tomadas, como se o Tribunal Constitucional devesse obrigatoriamente solidarizar-se com o poder da maioria, sob pena de precipitar uma catástrofe.

É como se a democracia devesse ficar em suspenso, devesse ser uma mera democracia de fachada.

 

Soares I


Mário Soares serviu-se da direita e de uma parte da esquerda para nos livrar do comunismo; agora quer ver se mobiliza a esquerda e uma parte da direita para nos livrar do neoliberalismo.

21 novembro 2013

 

Orgulho nacional

Não, não estou a falar do CR7. Falo, sim, das estrelas Michelin: o número de restaurantes portugueses distinguidos com essa honra passaram de 11 para 12! É uma vitória de todo um povo! Povo esse, é bem certo, que não tem dinheiro para comer nos ditos restaurantes. Mas, sem invejas nem mesquichices, e num ato de patriotismo, o povo orgulha-se por saber que há portugueses que os frequentam, não ficando atrás dos estrangeiros ricos. O aumento do número de restaurantes estrelados é aliás a prova do sucesso do programa de austeridade, que obriga a maioria do pessoal a comer em casa e a fechar as imundas tascas em que comia (vertente ecológica da austeridade), e em contrapartida, ou complemento, recompensa a minoria da população com o alargamento de uma oferta requintada de restauração, imagem gloriosa de Portugal no estrangeiro.

16 novembro 2013

 

Transitório é para sempre


 

A fórmula mágica que foi encontrada para fazer passar os cortes das pensões e dos vencimentos no crivo do Tribunal Constitucional foi a de considerar que tais cortes são temporários, embora por tempo indefinido. Quer dizer, os cortes são transitórios até não se sabe quando. Como se tudo se resolvesse com palavras e argumentos pueris.

A prática política inventou uma linguagem de subterfúgio (flexibilidade, ajustamento, corte na despesa, corte nas gorduras do Estado) e um tipo de argumentação infantil, como se os destinatários dessa linguagem e desse discurso fossem desprovidos de inteligência.

Além disso, a palavra dos "políticos" perdeu toda a credibilidade (para lá da "mentira" admissível no jogo político) e a confiança no Estado está completamente minada. Nada do que se diga é para ser encarado como certo, ainda para mais,com fórmulas incertas. Cortes temporários sem fim marcado? O que é isso?

O FMI já veio dizer: cortes para sempre. E o FMI não se engana, nem nos engana.  

14 novembro 2013

 

O FMI e o bloqueio do sistema


Flexibilização. Aí está, outra vez, a palavra-simulacro, tão do agrado do FMI. É preciso flexibilizar os salários, descê-los ainda mais, pois claro! A voracidade do FMI para comer os salários dos trabalhadores portugueses não tem limites.

O governo apresentou um orçamento que tem em vista a chamada convergência entre os sectores público e privado, diminuindo, de uma penada, retroactivamente, vencimentos dos funcionários, em nome de uma pulsão igualitária notável e sem precedentes, e vem o FMI e diz que é preciso reduzir (quer dizer, flexibilizar) ainda mais os salários dos trabalhadores portugueses, porque estes ainda ganham demasiado, para depois se ter de tornar a fazer uma nova convergência entre os sectores em nome da igualdade, e assim sucessivamente, até à nudez total, que é, verdadeiramente, a condição que nos iguala a todos, quando nascemos.

Porém, a arrogância do FMI não se fica por aí. Reincidindo num tique que tem caracterizado as suas últimas intromissões, o FMI volta à carga com o Tribunal Constitucional, como se estivesse, realmente, a impor o seu diktat a um protectorado, para usar uma comparação que tem direitos de patente num dos nossos governantes.

Dá que pensar esta insistência. Será que é mesmo da lavra do FMI esta apetência pelo nosso Tribunal Constitucional, ou será que o sermão lhe terá sido encomendado? Sei lá! Nesta época em que não há nenhum principio que pareça ser inabalável, é de desconfiar de tudo.

Sei é que a nossa democracia está a ficar cada vez mais claustrofóbica, para usar outro termo cunhado por outrem. O sistema está a ficar sem saídas, bloqueadas que parecem estar as alternativas e as possibilidades de mudança, por via democrática. O assédio inconcebível, de dentro e de fora, ao Tribunal Constitucional é mais uma tentativa de bloqueio de um órgão imprescindível ao funcionamento da nossa democracia.

07 novembro 2013

 

A Europa usurária


 

 

Um tema omnipresente nas instâncias políticas portuguesas é o de que vivemos com soberania limitada, por causa das condições que nos são impostas pela troika. A governação do país serve-se, aliás, disso para justificar todas as politicas de retrocesso.

Nessa linha, o vice-primeiro-ministro, aquando da apresentação do seu famoso guião da reforma do Estado, chegou a comparar a situação à perda da independência, em 1580, e a saída da troika, à restauração da mesma independência, que equiparou a 1640.

Ora, a troika é composta por três entidades: a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI. Duas dessas entidades são, portanto, instituições da União Europeia.

Sabemos como a troika tem agido connosco: uma inflexibilidade a toda a prova, ao mesmo tempo que passa a vida a exigir flexibilidade, ou seja, recuo da legislação laboral, retrocesso nos salários, nas pensões e nas prestações sociais, desmantelamento do Estado social.

Se é verdade que o FMI não é uma instituição europeia, também é verdade que Bruxelas se tornou o símbolo dessa inflexibilidade, não recuando um milímetro nas exigências do cumprimento das metas da dívida e até mais do que isso: nas exigências de uma austeridade asfixiante e destruidora de todos os avanços conseguidos em matéria dos direitos económicos, sociais e culturais. Há mesmo certas personalidades do grupo dos eurocratas de Bruxelas que se tornaram sinistras pelo modo como manifestam essas exigências, na defesa intransigente dos interesses dos credores e dos seus juros, contra os mais elementares direitos de uma vida digna para os portugueses.

É afrontoso que um chefe da troika, que defende o aumento da idade da reforma para países como o nosso, para além das medidas de austeridade referidas, se tenha reformado há poucos dias com 61 anos de idade, com uma pensão de reforma que rondará os € 10.000,00, continuando a trabalhar como conselheiro e auferindo por isso mais uma batelada todos os meses.  

É caso para perguntar que raio de Europa é esta que nos esmifra desta maneira e que nos põe a pata em cima. Uma Europa que o vice-primeiro-ministro diz querer ver pelas costas, saudando a saída de duas das principais instituições que compõem a troika como a recuperação da nossa independência.

É caso para perguntar por quê tanta vassalagem para com estas entidades e tanta tibieza nas negociações com elas. E por quê tanto afã dos países periféricos em  manterem-se separados uns dos outros, em vez de se juntarem e fazerem frente a esta Europa usurária, como lhe chamou, premonitoriamente, Miguel Torga, no derradeiro volume do seu Diário: “Tenho como certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no  curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros”.  

 

Médicos/carrascos em Guantánamo

A notícia foi divulgada e não suscitou qualquer indignação, nem sequer espanto: pessoal médico participou na prática da tortura contra os prisioneiros em Guantánamo. E mais: não só participou, acompanhando os interrogatórios de forma a "procurar vulnerabilidades que os agentes que interrogam possam explorar", como até se envolveu na conceção dos métodos de tortura... De facto, quanto a Guantánamo, a indignação e o espanto já se esgotaram.

 

Subtilezas da língua...

Subtilezas da língua, ou melhor, a hipocrisia insuportável da linguagem política: o Presidente da Comissão Europeia, o nosso conhecido Durão Barroso, nunca criticou, muito menos pressionou, o TC - limitou-se a chamar a atenção para as consequências gravosas de o TC vir a "chumbar" o OE... Vergonha na cara é coisa definitivamente extinta na "classe política".

06 novembro 2013

 

Os juízes, a independência da função e as condições económicas


É verdade que a questão da degradação dos vencimentos dos juízes e dos magistrados em geral é preocupante, na medida em que ponha em causa o prestígio e a independência das funções. Não será certamente muito prestigiante para a função que os juízes e magistrados do Ministério Público se vejam em risco de não poderem cumprir obrigações assumidas na perspectiva de justas expectativas criadas na base de uma certa estabilidade económica e que venham a cair em situação de insolvência, a ser alvo de execuções, de acções judiciais por incumprimento de contratos, etc.

Todavia, a reivindicação sindical nesse âmbito, principalmente quando amplificada nos órgãos de comunicação social, pode não ser bem vista na actual situação e pode mesmo não ser compreendida.

Eu começaria por confrontar o poder político com a necessidade de quebrar a obrigação de exclusividade das funções, embora isso para muitos magistrados não significasse quase nada ou mesmo nada, por força da completa absorção das suas vidas pela profissão, mas o certo é que ficaria a nu a singularidade da sua situação e, por outro lado, há magistrados que dão aulas e, legalmente, não podem receber contrapartida por esse exercício, assim como há outros serviços que poderiam prestar sem que tal bulisse com a independência que se lhes exige.  

Quanto a formas extremas de luta, como as que se têm ouvido, eu poderia admiti-las como último recurso e com outro fundamento, que não a reivindicação económica. Por exemplo, o fundamento das pressões inadmissíveis sobre o exercício das funções judiciais, pondo em causa a independência dos tribunais e o Estado de direito democrático.

03 novembro 2013

 

Segunda carta ao protagonista-mor da nossa Revolução


Com uma sugestão no final

 

Prezado Senhor Corte:

Permita-me V.ª S.ª que reincida na minha ousadia de lhe voltar a escrever, roubando-lhe mais um bocado do seu precioso tempo, mas creia-me que o faço por força do acrisolado amor que sinto pela nossa Pátria e pela crescente admiração que nutro por V.ª S.ª. Na verdade, estes últimos dias vieram dar-nos uma demonstração definitiva do seu enorme talento.

Refiro-me à reforma do edifício estadual por que tanto ansiávamos, na perspectiva de vermos,  finalmente, a coroação de todas as profundas reformas que têm vindo a ser empreendidas por um Estado novo, que seja digno da nossa revolução.

Neste tão delicado capítulo, começou V.ª S.ª por nos dar uma lição mestra, qual seja a de que uma reforma de tal magnitude não está no fim nem no princípio; está em todo o processo. A tão famigerada reforma já vem sendo efectuada desde que principiou a nova governação do País, por muito que os nossos opositores a não quisessem ver e mesmo que a não tivessem enxergado as pobres mentes de muitos de nós.  

A reforma do edifício estadual está ai, bem palpável, nos cortes que V.ª S.ª tem vindo a efectuar e que se propõe continuar de forma tão audaz, e aos quais me referi na minha anterior missiva. Como é que a oposição demenciada que temos não foi capaz de ver isso? Como é que muitos de nós não tinham ainda dado por ela?

Se nos pusermos a olhar com olhos de ver, desde que tudo principiou até ao presente, logo encontraremos a chave da reforma: uma bela operação de cortes sucessivos, que têm vindo a delinear um figurino gracioso e justo, onde há-de caber na perfeição o corpo do Estado novo, enfim liberto para sempre, como se espera, de todas as enxúndias a que antigamente se chamava “funções sociais do Estado”, com os desperdícios inerentes por elas implicados, quer no que respeita a funcionários, quer no que toca a excrescências de salários e pensões.

Nisto, ou seja, nesse continuado labor de recorte, afinal tão saliente, mas, ao que parece, invisível para muita gente, que nele não divisava qualquer reforma estadual, reside o grande talento de V.ª S.ª

Faltava só concluir o trabalho e esse consistia apenas, como notou um dos mais finos observadores da nossa realidade actual, em enchumaçar o figurino, dando-lhe uma forma mais arredondada e composta. Mas o principal - o talhe, os grandes cortes de mestre – já estavam feitos.

Se não parecesse demasiado atrevimento, permitir-me-ia apenas fazer uma sugestão a V.ª S.ª, e é esta: Leve V.ª S.ª para a frente, com destemor, o projecto de cortar na canzoada e na gataria que anda para aí a ladrar e a afiar as felinas unhas contra o projecto de refundação do nosso País. Não se arrependerá.

 

Com isto me despeço, renovando os meus mais sinceros sentimentos de

                                                                                              Gratidão e Fidelidade

 

Jonathan Swift  

(1665-1745)

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