30 setembro 2012

 

António Manuel Hespanha


Na semana passada, o Professor António Hespanha foi alvo de uma justíssima homenagem pública por ocasião da sua “reforma”.
Conheci o Professor António Hespanha em 1980, na Faculdade de Direito de Lisboa, onde a sua forma de transmitir a História do Direito se distinguia claramente de outras que praticavam um ensino esclerosado e bafiento.
Assim, não foi de estranhar a sua curta estadia nessa Faculdade de onde, em circunstâncias normais, nunca deveria ter saído.
Reencontrei o Professor António Hespanha mais tarde e permaneço, desde sempre, profundo devedor da sua obra e admirador da extraordinária qualidade do seu trabalho, do seu permanente empenhamento de investigador, da sua infatigável produção científica em actualização constante e do seu inalienável exercício de cidadania.
Julgo, porque o testemunhei, que o reconhecimento interno que possui está bem longe da projecção e do respeito que o seu pensamento e a sua obra merecem no exterior.
As análises e a visão que sempre transmitiu do mundo dos juristas e do poder judicial, nomeadamente, dos seus limites e das suas vinculações, das suas arrogâncias e das suas supostas neutralidades continuam a ser ferramentas indispensáveis para perceber criticamente o percurso do veredicto jurídico.
A maior homenagem que lhe podemos fazer é a de continuar a ler e a reler a sua  obra enquanto aguardamos, como sempre, pela próxima.

29 setembro 2012

 

Liberdade de expressão e fundamentalismo


 

 

 

 

A questão da crise em que estamos mergulhados tem-me absorvido completamente a atenção e, por isso, tenho relegado para segundo ou terceiro plano outras questões.

É o caso, por exemplo, da questão da liberdade de expressão face a recentes acontecimentos, como a divulgação pelo You Tube de um vídeo de autoria de um cristão copta, natural do Egipto, a residir na Califórnia, e que denigre o profeta Maomé, apresentando-o como debochado e pedófilo.

Este vídeo provocou uma onda de acções extremamente violentas em países árabes, africanos e asiáticos, com multidões em fúria incendiando, saqueando, matando e espalhando o caos na via pública. Os alvos atingidos são sobretudo interesses e cidadãos americanos. Os actores são fundamentalistas islâmicos, que bramem e manifestam a sua cólera como um rastilho mortífero que se fosse espalhando rapidamente por uma vasta corda de países muçulmanos.

Mais recentemente, um outro indivíduo de origem francesa resolveu replicar o gesto do autor do vídeo, publicando caricaturas de Maomé na revista Charlie Hebdo , com isso deitando mais petróleo para a fogueira.

Eu acho que há aqui duas atitudes fundamentalistas contrapostas.

De um lado, estão os radicais islâmicos, os adeptos do chamado islão político; do outro, os fundamentalistas do direito à liberdade de expressão.

Os primeiros não toleram qualquer ataque aos seus ícones, aos seus símbolos e aos seus dogmas religiosos. Mais: não toleram sequer que outra verdade se oponha à verdade por eles defendida; não toleram o outro, o diferente, a alteridade em matéria de religião e, mesmo, outra verdade e outra lei, que não sejam a verdade e a lei da sua religião, confundindo o espaço sagrado com o espaço profano. É o totalitarismo religioso. É o campo aberto do sagrado violento, para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo, todavia aplicada a outro contexto (Acreditar Em Acreditar).

Os segundos sacralizam (sem qualquer sentido metafórico) a liberdade de expressão e entendem que tudo deve ser sacrificado a essa divindade, sejam quais forem as consequências. No limite, usam-na não como veículo do pensamento, mas como um fim em si mesmo ou como um brinquedo caprichoso; não como forma articulada de exprimir uma ideia, uma emoção, um sentimento ou um simples desabafo, mas como puro instrumento de agressão.

Não vi o vídeo passado no You Tube nem as caricaturas publicadas na revista Charlie Hebdo, mas, a acreditar em tudo o que se tem dito e escrito, tratou-se, em ambos os casos de pura provocação e, mesmo de agressão a sentimentos religiosos.

Estamos habituados, no Ocidente, a ataques fortíssimos aos dogmas, ícones sagrados e sentimentos religiosos dos crentes, em particular dos cristãos e católicos. E, mesmo, à pura blasfémia, ao ultraje da própria divindade. Tutela-se a liberdade de consciência e de culto, mas não, como disse, os dogmas e os sentimentos religiosos dos fiéis de qualquer credo, ainda que estes sejam feridos de forma grosseira ou até gratuita.   

Claro que isto custou muita dor, suor e lágrimas, muitas mortes, fogueiras inquisitoriais, selvajarias de todo o género. O cristianismo e em particular o catolicismo já tiveram a sua fase de fundamentalismo institucionalizado, durante séculos. Em nome da verdade única da religião católica, perseguiram-se, de uma maneira infame, os crentes de outras religiões, sobretudo os islamitas. Uma luta sem tréguas, que passou por revoluções como a Revolução Francesa, levou à secularização da cultura e à laicização do Estado, à separação do espaço sagrado do espaço profano, à tolerância religiosa, permitindo a convivência de todas as religiões. 

Essa obra de laicização não terminou; continua nos nossos dias, como mostra, entre outros, Jacques Le Goff (“Clérigo/Leigo”, Enciclopédia Einaudi, vol. 12). 

Ora, os países muçulmanos não tiveram nenhuma revolução francesa, nem um forte movimento de laicização, que fosse capaz de separar o sagrado do profano, secularizar a cultura, separar a Igreja do Estado e relegar a religião para a esfera do privado e das opções de cada um. É provável que esta seja uma visão ocidentalizada e eurocêntrica, que não tem em conta todo o património cultural desses povos, nem o historial de humilhações que o Ocidente lhe tem infligido ao longo dos séculos.

Com esta notação relativista, aceitemos que essa é uma das causas históricas, mas não é a única que explica a emergência do fundamentalismo islâmico, com contornos muito específicos nos nossos dias. Mas esse fundamentalismo não é a característica dominante da religião muçulmana, nem dos povos islâmicos. É apenas o traço característico de uma facção radical. São os adeptos dessa facção que têm reagido de uma forma absolutamente inaceitável, desproporcionada e injustificada aos ataques desferidos ao profeta Maomé.

É evidente que não deve haver qualquer tipo de contemplação ou de submissão perante tais actos de vandalismo e de cegueira e que a liberdade de expressão deve ser defendida e afirmada face a essa intolerância religiosa, mesmo quando o resultado dessa liberdade se evidencie como paupérrimo do ponto de vista das ideias, da argumentação ou do valor estético. Atitude contrária poderia ter como resultado abrir-se uma porta à censura religiosa e à possibilidade de se lançarem na fogueira obras e autores por interposição de critérios mais ou menos arbitrários. Lembremo-nos do que aconteceu com Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, agora tão evocado a propósito da autobiografia que conta o pesadelo vivido pelo autor (Joseph Anton).

Porém, a atitude de fundamentalistas que, a coberto da liberdade de expressão, apenas pretendem provocar a ira dos fundamentalistas islâmicos parece-me tão insensata e irresponsável como a dos que incendeiam, destroem e matam em nome do carácter intocável das suas concepções religiosas.   

22 setembro 2012

 

A velha questão da liberdade de expressão e dos seus limites

Publicar textos, desenhos ou filmes que os muçulmanos possam considerar ofensivos é o último passatempo de certos defensores ocidentais das liberdades. Querem assim demonstrar que os muçulmanos são por natureza intolerantes e civilizacionalmente bárbaros. Querem assim demonstrar a superioridade da nossa civilização que tolera a crítica e a sátira.
Acontece, porém, que tais guardiões da liberdade de expressão são menos efusivos na sua defesa quando se põe à prova a tolerância ocidental. Por exemplo, quanto à divulgação pública de mensagens ideologicamente radicais de dirigentes religiosos muçulmanos residentes do lado de cá. Por exemplo, quando a religião cristã é satirizada (ou simplesmente abordada numa perspetiva heterodoxa, como aconteceu cá no nosso burgo com o romance "Caim" de Saramago). Nessas alturas senten-se ameaçados ou ofendidos... E clamam pela criminalização/perseguição de uns, pela censura de outros.
As "sátiras" a Maomé que têm sido difundidas recentemenete não são manifestações de humor, de criatividade artística, nem sequer de crítica válida. São, sim, armas de arremesso da "guerra de civilizações" que os "tolerantes" ocidentais irresponsavelmente procuram incentivar.

 

Andando povo assim levantado...

O povo acordou e parece que tem insónias... Levantado de dia e de noite... Sempre à perna dos governantes. Faz lembrar o povo de 1383, que não dava descanso à rainha renegada nem ao candidato a rei hesitante. Bons tempos, sem dúvida. Que deram a volta por cima à desgraça e inauguraram uma época de ouro da nossa história. Será que a história se repete?

 

A bênção do padrinho alemão

De mal com o povo, mas de bem com o padrinho alemão, que lhe deu a bênção há dias em Berlim. Como servir dois senhores? É este o dilema de Gaspar.
Já no sec. XVI Afonso de Albuquerque andou às voltas com o mesmo dilema: como servir o povo e o rei ao mesmo tempo? Decidiu-se pelo povo e disse-o por escrito ao rei, em carta que ficou memorável.
E agora? Que poderemos esperar?

20 setembro 2012

 

A crise nas palavras dos outros


 

 

 

 

«De há algum tempo para cá, era visível um padrão de actuação governativa, muito dependente de ideias simples de markting político, que consistia em proceder em três fases. A primeira era a criação de um inimigo, conforme com o sentimento populista. Esse inimigo foi o Governo anterior, Sócrates, o despesismo, o clientelismo do PS, o descalabro das contas, a bancarrota, o “regabofe”. Havia muita razão para apontar a este inimigo, mas a uma dada altura já não chega. À custa dele passaram as primeiras medidas de austeridade, em violação das promessas eleitorais. Mas o apoio popular à austeridade estava intacto, e a culpa era sempre retrospectiva.

«Depois as coisas começaram a complicar-se e apareceram novos inimigos. Sócrates teve a fronda dos professores. Passos Coelho imitou-o, apontando o dedo aos funcionários públicos. O mecanismo de os tornar inimigos era o mesmo de sempre e com sucesso garantido: eram uns privilegiados em relação ao privado, por isso tinham que ser punidos.»

Pacheco Pereira, “A época do caranguejo”, Público de 01/09/2012

 

«A reação do governo à declaração de inconstitucionalidade de algumas medidas legislativas, que deu origem a um confronto hostil com o Tribunal Constitucional, mostra bem que, nas suas práticas, o governo tende a situar-se num espaço em que não há um fora da lei e em que a guerra civil legal instaurada pelo estado de exceção não declarado pode abolir a distinção entre poder legislativo, executivo e judicial.»

António Guerreiro, Expresso/Actual de 15/09/2012

 

«Médicos, enseñantes, funcionários, estudantes y trabajadores fijos son descalificados. Al disfrutar de supuestos “privilégios”, parecem corresponsables de la situación actual. Desprestigiándolos se puede activar um malestar social basado en el rencor, la envidia y el miedo, y socavar la reputación de lo público para justificar su liquidación.

(…)

La reiteración machacona de una consigna (y no de un argumento, como sugiere la equivoca noción de “argumentrio”) a varias voces, en momentos y lugares distintos, es habitual: Los “interinos han entrado a dedo”; “los sindicatos viven de las subvenciones”, “los professores trabajan poco”, etcétera. “Lo que digo três veces es verdad”, afirmaba el Bellman de Lewis Carrol. La derecha saca partido de esa “performatividad” que rige la economia de los enunciados públicos: cuando un comportamento es reiteradamente reputado de normal, se tiende a normalizarlo; o a estigmatizarlo, si se le há tildado repetidamente de anómalo.»

Gonzalo Abril, Maria José Sanchez Leyva y Rafael R. Tranche, “La ocupación del linguaje”, El País, 01/09/2012.

   

«O domínio esmagador da economia e do governo que lhe corresponde esmagou completamente a figura mais importante da “polis” democrática: a soberania popular. A magia negra da economia faz com que a “crise” venha necessariamente acompanhada de uma injunção que podia ser traduzida por umas célebres palavras de Frederico II: «Podem pensar tanto quanto quiserem e sobre tudo o que quiserem, mas obedeçam!» Ora, como mostra Agamben em escritos mais recentes “crise” e “economia” deixaram hoje de ser usados como conceitos e passaram a ser palavras de ordem que servem para impor e induzir a aceitação de medidas e restrições. Na verdade, a “crise” dura há décadas e, de certo modo, não é senão o modo normal como funciona o capitalismo. A “crise” sempre foi o modo como o capitalismo recuperou e restaurou a ordem económica, desembaraçando-se da resistência social e política que foi amadurecendo durante a fase do ciclo em que houve acumulação.»

(…)

«Trata-se de uma espécie de comunismo do capital, em que o Estado e a comunidade satisfazem as necessidades dos “sovietes financeiros” (como já foram chamados): bancos, seguradoras, grandes empresas. Assistimos assim à situação paradoxal que consiste na abolição da sociedade salarial, mas agravando as relações de dominação que ela implica na sua definição clássica. Entre o indivíduo completamente atomizado e o mercado do emprego já não existem ecrãs de proteção, que têm vindo a ser completamente destruídos. Nada impede assim o regresso a formas de produção pós-fordistas que tornam impossível qualquer identificação do indivíduo com a sua função social».

António Guerreiro, Expresso/Actual, de 15/09/2012.

 

“Apenas um por cento da população tem o que noventa e nove por cento precisa para viver”.

Joseph E. Stiglitz, prémio Nobel da Economia, El precio de la desigualdad  (trad.), Taurus, Madrid, 2012 .    

17 setembro 2012

 

A avaliação do povo


            O Governo passou até agora em todas as avaliações da tríade (vulgo: troika), mas chumbou na avaliação do povo. E esta não é menos importante do que aquelas, porque, embora o povo não tenha cheques para passar ao Governo, só ele pode conferir ao Governo um título sem o qual nenhum governo se aguenta: a legitimidade democrática.
            É que esta não se restringe à obtenção do mandato governativo ínsito na eleição. A legitimidade pode perder-se pelo caminho, quando se governa contra a grande maioria da população. É claro que governar implica muitas vezes “medidas impopulares”. E o populismo é um dos males das democracias. Não é disso que se trata, porém. Durante cerca de ano e meio acumularam-se medidas que não estavam no programa do Governo, que iam além dos compromissos assumidos no memorando. Durante esse tempo foi sendo aplicado um programa acentuadamente ideológico, uma cartilha forjada pelo liberalismo radical para arrasar todo o património de direitos construído a partir do 25 de Abril. A ideia que nos querem vender é que para um dia sermos, não propriamente ricos (disso não vale a pena ter esperança), mas remediados, temos agora que empobrecer, para sermos “competitivos” internacionalmente. Quanto mais pobres mais competitivos. Os direitos não são para nós, são um luxo dos ricos…
            Este discurso pegou até certo ponto porque era evidente a falta de alternativas políticas, a falta programas precisos alternativos, a falta de protagonistas capazes de credibilizarem a mudança. O povo foi “sereno”, foi calmamente perdendo “gorduras”, acumulando cortes sobre cortes nos salários, nas pensões, nos direitos sociais.
            Mas há um dia em que uma gota, grande ou pequena, extravasa da vasilha que enche. E nesse dia o protesto rompe e alastra, mesmo que não se perspetivem soluções, mesmo que não haja alternativas claras e organizadas.
Foi o que sucedeu. O Governo foi claramente apanhado de surpresa, convencido como estava que “nós não somos a Grécia…” Convencido que a avaliação da troika bastava para calar a malta. Que a “nota positiva” (mais o cheque) caucionavam e davam alento à continuação do programa ideológico. De repente, em poucos dias, quase em horas, a legitimidade do Governo está em crise. Não a formal. Mas a legitimidade profunda, a legitimidade social. O profundo sentimento de contestação ao Governo que atravessa a sociedade portuguesa, demonstrado nas manifestações do dia 15 (cuja dimensão e genuína espontaneidade é impressionante), confirmado pela unanimidade ou convergência na crítica por uma pluralidade ampla e diversificada de individualidades relevantes e associações da sociedade civil, põe o Governo numa posição frágil. Sem uma base social ampla e forte não se pode governar.
Enfim, vamos esperar para ver qual conta mais: se é a avaliação da troika, se a do povo…

16 setembro 2012

 

As manifestações do fim de semana


Como toda a gente tem reconhecido, nunca, desde o “25 de Abril” e o primeiro de Maio de 1974, houve tão grandiosas manifestações cívicas, espontaneamente organizadas, como as deste fim-de-semana. O povo, que “tão pacientemente” vinha suportando os mais atrozes sacrifícios, como há tempos o reconheceu o primeiro-ministro numa expressão polémica, veio à rua em peso para desabafar a sua indignação e dizer que o limite foi ultrapassado.

Foi tão belo, tão emocionante, tão vibrante, como nesses tempos inaugurais da democracia reconquistada. Devemos esse feito, que passará a ser uma das efemérides mais importantes da nossa História contemporânea, à acção dos nossos governantes actuais. Infelizmente.  

13 setembro 2012

 

O Governo ou o Povo?


 

Afinal, a avaliar pelo que aí vai, parece que está toda a gente contra o governo e o seu escasso reduto de apoiantes.

Manuela Ferreira Leite, uma militante de peso do partido a que pertence o primeiro-ministro e ex-governante em representação desse partido, apelou, de uma forma sem precedentes, a um boicote dos deputados da maioria ao orçamento e a uma contestação generalizada das medidas de austeridade anunciadas.

Bagão Félix, outro militante de peso do outro partido da coligação - o CDS – tem farpeado acutilantemente a obtusidade dessas mesmas medidas, manifestando a sua indignação pela insensibilidade social demonstrada pelo governo e incitando à revolta contra elas.

Belmiro de Azevedo, que supostamente iria ser um dos grandes beneficiários da transferência de parte significativa dos encargos da TSU das entidades patronais para os trabalhadores, malhou no governo forte e feio.

O presidente da CIP verberou o governo pelas medidas que tenciona pôr em prática, nomeadamente a questão da TSU.

Praticamente nenhum economista com o mínimo de autonomia e independência face ao governo apoia as referidas medidas, quase todos as achando inconcebíveis e alguns, mesmo perversas.

As centrais sindicais parecem entender-se novamente para acções comuns.

O PS ameaça, finalmente, abandonar a “oposição moderada” (expressão do “EL País”) que tem seguido e caminhar para a ruptura.

Não há praticamente ninguém que não diga que o país não esteja a ser conduzido para a ruína total com esta política.

É caso para perguntar:

Onde está, afinal, o governo? Num país concreto, formado por cidadãos de carne e osso, ou na estratosfera? Onde está essa famosa gente vinda de universidades estrangeiras, essa brilhante geração de académicos com ideias a fervilhar na cabeça?

Ou será que o governo é que tem razão e toda a gente (ou quase toda a gente) é que paira na idiotia, como naquela história em que o louco, espreitando através do gradeamento do jardim que circundava o manicómio, perguntava aos de fora: Eh lá! Vocês aí são todos malucos?

Ou como naquele poema de Bertolt Brecht em que, a certa altura se diz que:

 

(…) o Povo

Perdera levianamente a confiança do Governo

E só a poderia reconquistar

Trabalhando a dobrar. Pois não seria

Então mais fácil que o Governo

Dissolvesse o Povo

E elegesse outro?    

11 setembro 2012

 

As medidas draconianas


 

Como já se esperava, o primeiro-ministro veio anunciar a inflição de medidas de austeridade mais gravosas.

Como já se esperava, o alvo dessas medidas são os mesmos estratos da população portuguesa que os têm vindo a suportar desde o início. Fundamentalmente, os trabalhadores por conta de outrem, tanto do sector privado como “do sector público”, com as devidas excepções, que, segundo consta, já são mais do que as inicialmente previstas e, pela experiência que temos, podem ainda aumentar. Excepções que, por sinal, contemplam pessoas de chorudos vencimentos.

O que não se esperava (ou não se acreditava) é que as medidas fossem tão chocantemente gravosas e tão chocantemente discriminatórias. E que fossem anunciadas durante a estadia fiscalizadora da troika, antes mesmo de esta tirar qualquer conclusão, numa espécie de antecipação destinada a surpreender, pelo arrojo, o próprio fiscalizador. Uma atitude de mais do que de “bom aluno”, mas de aluno obcecado com o desejo de agradar. Ou então, se não é isso, com a demonstração de que é “mais papista do que o papa” (melhor seria dizer, do que o papão).

Tomei conhecimento das medidas draconianas em Espanha, onde me encontrava. As televisões e os jornais não falavam de outra coisa, na abertura dos telejornais e na primeira página dos periódicos. O “El País” de sábado passado, por exemplo, ocupava uma boa parte da 1.ª página, com uma grande “caixa”: Portugal impone un recorte general de sueldos para cumplir el deficit”. E a 2.º e a 3.ª páginas estavam totalmente preenchidas com a notícia surpreendente: Portugal se hunde en la austeridade, dedicando largo espaço às medidas anunciadas por el primeiro ministro português, el conservador Pedro Passos Coelho, apresentado como “Más “troikista” que la troika” e onde Portugal era apontado como campeón de la austeridade y las reformas (…) en parte por razones ideológicas (…) en parte para destacar-se como el alumno aventajado de essas politicas.

Quando cá cheguei, vi com detalhe a dimensão do catastrófico anúncio.

Lê-se e não se acredita.

As medidas têm, mais do que nunca, um recorte classista (ainda hoje o reconheceu o insuspeito Bagão Félix), atingindo, pela enésima vez, os sacrificados de sempre, mas com uma mais vincada deliberação de esmagar os trabalhadores, os funcionários públicos, as classes médias, em descarado proveito do capital. Como se já não bastasse o destroçamento da legislação laboral, agora ultrapassam-se todos os limites, surripiando-se ainda mais nos magríssimos salários para depor a parte surripiada nos cofres dos que têm escapado às medidas de austeridade. Assim acontece com a taxa social única (TSU).

E, para além disso, continuam a discriminar-se os funcionários públicos e os pensionistas em relação aos restantes trabalhadores e todos, em relação aos titulares de outros rendimentos, numa linha francamente colidente com a argumentação do acórdão do Tribunal Constitucional. Até parece que há aqui uma vontade de afrontar aquele órgão de soberania, como se se quisesse provocá-lo a uma nova tomada de posição, que não pode ser outra senão a de reincidir no já decidido, com eventual adaptação da argumentação já expendida, para depois o acusar de obstrução.

Com efeito, seria uma quase injúria considerar que os autores das medidas anunciadas sofrem de ineptidão para interpretar convenientemente o texto do referido acórdão.

08 setembro 2012

 

Mais do mesmo e sobre os mesmos

Para cumprir a exigência de equidade contida no acórdão do TC, o Governo acentua a desigualdade!
É apenas e sempre aos rendimentos do trabalho assalariado e aos pensionistas que o Governo vai sacar o dinheiro. E diz que assim está a cumprir o dito acórdão! É inevitável chamar de novo o TC à colação. E francamente não é de esperar nenhuma cambalhota jurisprudencial... o TC tem de se respeitar a si próprio. E desta vez terá certamente que tratar daquilo a que tem fugido: a apreciação da questão à luz do princípio da confiança.
E, antes disso, que tem a dizer o PR? Não disse ele recentemente que não podiam ser exigidos mais sacrifícios às vítimas de sempre?

05 setembro 2012

 

Justiça de Fafe

O "Público" tem vários editorialistas, todos anónimos. Hoje calhou a vez a um da linha dura (talvez o mesmo que escreveu o editorial sobre o "regabofe"...). Juntando agressões a polícias (fazendo suas as dores de alguns polícias) e vandalismo urbano (implicitamente em apoio do anunciado projeto governamental sobre esse tema), o editorialista exige que "a justiça funcione". E funcionará, de acordo com o teor do editorial, quando as coisas sejam "postas no devido lugar". Ou seja, pretende-se uma justiça restauradora da ordem pública, implacável com os seus inimigos. Justiça de Fafe, pois (agora que ela é repudiada no lugar de origem).

04 setembro 2012

 

Obama: o problema da cor da pele

A cor da pele continua a ser o grande problema de Obama. A "América" profunda não se conforma com ter um presidente mulato. Por isso continuamente questiona o seu lugar de nascimento, a sua religião (a aparente e a oculta...), o seu patriotismo, etc., sempre para insinuar ou mesmo concluir que ele não é um verdadeiro americano, ou que não tem direito a ser americano...
É puro racismo o que subjaz a essa campanha, um racismo latente, endémico na sociedade americana, não apenas no Sul, mas transversal ao país, como se confirmou agora na convenção republicana.

 

"Desaparecido", ou o radicalismo dos arianos

O ministro do Interior alemão entendeu mandar espalhar pelos bairros "muçulmanos" das cidades alemãs cartazes com a fotografia de um jovem muçulmano "desaparecido", porque em risco de estar a ser "captado" pela ideologia radical islâmica... É, pois, no entender do dito ministro, um cartaz contra a radicalização...
Será preciso dizer que é este caldo de cultura oficial que favorece o aparecimento de cruzados anti-islâmicos como Breivik? Não será o dito cartaz a expressão mais acabada do radicalismo ariano?


This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)