21 novembro 2011

 

Sobre o direito do trabalho em época de crise

Segue o texto da intervenção do nosso colega de blogue António Henriques Gaspar no encerramento do XV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, que pela sua importância merece divulgação (e leitura):

"1. A crise financeira e económica que nos invade desde há três anos apresenta-se com a marca do caos e da dissolução das referências. A aparente irrealidade dos factos, a sua origem misteriosa e os montantes astronómicos confundem os espíritos, ultrapassam a razão e acrescentam uma dose suplementar de absurdo.
A crise económica que veio colada à crise financeira tem consequências brutais nos mercados de trabalho, produzindo inquietudes e perplexidades no direito do trabalho.
O respeito pelo valor e função social trabalho, as liberdades colectivas, a solidariedade, a democracia social e a dignidade da pessoa humana constituem princípios afirmados e sedimentados, sobre os quais o direito do trabalho construiu a sua autonomia dogmática na densificação de valores essenciais de justiça social.
São os princípios fundadores da Declaração de Filadélfia de 1944, que estão afirmados por forma explicitamente dogmática como verdadeiro acto de fé, mas que foi também, nas circunstâncias da época, um acto de razão.
Especialmente o imperativo categórico da dignidade da pessoa humana.
A crise afecta todos os equilíbrios, fragiliza aqueles que são mais frágeis, agrava a insegurança da existência; a incerteza do amanhã tornou-se um princípio de vida.
O direito do trabalho ficou no centro deste furacão.
Afectado pela crença em teorias económicas que se auto-consideram imanentes e que, por isso, é suposto a política ter por missão executar e não questionar, o direito do trabalho foi envolvido por uma tensão desconstrutora pós-moderna, com o risco de pulverização ao serviço da ditadura da «razão económica».
Mas as teorias económicas podem ser tudo menos certezas.
A economia não é senão uma disciplina de explicação e de possível e tentativa interpretação ex post.
Ocupa-se a tentar explicar e a ensinar-nos com números e gráficos o que aconteceu, mas não prevê nem constitui auxílio relativamente ao que vai acontecer.
Desde logo, porque não domina, nem interpreta, nem fixa numa qualquer percentagem, a variável essencial – a «instituição invisível», a verdadeira moeda deste «presente líquido» que é a confiança.
Diz-se que as teorias económicas necessitam da prova dos factos.
Só que a prova dos factos pode vir tarde, quando são devastadoras as consequências.
A crise financeira – e temos hoje a prova dos factos – não é um acidente da natureza como um tremor de terra; foi sobretudo a falência de teorias económicas que induziram, capturando-as, políticas suicidárias de desregulação financeira.

2. Nestes tempos de horizonte saturado, o trabalho – ou o emprego – é cada vez mais um bem escasso.
A escassez reduziu o trabalho à dimensão de «mercadoria».
Nas representações, para a comunicação e a linguagem redutoras da economia, o desemprego é um número – são 12,5%.
Mas na linguagem das humanidades, a representação é mais complexa; são 700 mil mulheres e homens afectados na sua dignidade, diminuídos na cidadania, em estado de insegurança aguda que mata a esperança e fragiliza os comportamentos individuais.
Na desindustrialização crescente do primeiro mundo, o trabalho perdeu a centralidade.
Perdida a centralidade do trabalho, a pessoa perde o valor de afirmação de si, de inclusão, da auto-estima, e das condições de livre realização da personalidade.
A ideologia salvadora do auto-emprego não é solução; o trabalho informal e as actividades paralelas, embora transitoriamente possam servir de almofada ou amortecedor social, têm riscos de conduzir à exclusão.
A redução do trabalho a mercadoria e a mero factor de produção pressiona a desconstrução dogmática do direito do trabalho, podendo levar à dissolução progressiva do princípio da legalidade material.
A instrumentalização do direito do trabalho pode afastar a rule of law, para ficar a ser rule by law em conjunto volátil de regulações ao serviço das imposições totalitárias da economia e da finança.
As regulações do trabalho – não já o direito do trabalho na sua dignidade científica e dogmática – seriam então degradadas em instrumentos de «darwinismo normativo» no «mercado de normas» da competição global.

3. O comprometimento teórico do direito do trabalho na autonomia e na função tem de se assumir como uma afirmação de resistência.
Resistência que não poderá ser apenas ou sobretudo reacção passiva e rápida ás flutuações e às contingências da evolução da economia.
É necessário recentrar a capacidade de intervenção e acção, construindo e reconstruindo modelos teóricos e práticos que permitam na crise dar sentido e consistência ao direito do trabalho.
O direito do trabalho constitui, porventura mais do que outros ramos, um meio de comunicação política.
Tem, por isso, a função de construir e comunicar normativamente soluções que são o resultado de escolhas políticas.
Mas a função de comunicar normativamente escolhas políticas não pode ser desgraduada em funcionalização a-dogmática.
Nem poderá conviver com a dissolução de categorias jurídicas axiais.
O direito do trabalho não poderá ser transformado em agregado regulamentar dos elementos de uma mercadoria, em fundamentalismo funcional e nihilismo jurídico.
O rumo das relações para o direito civil, o mito da igualdade e da liberdade contratual em mercados fortemente segmentados, a condição de soft law em tempo de escassez, degradarão certamente o estatuto do trabalhador, enfraquecendo a limites inaceitáveis a função de reequilíbrio e de protecção relacional.
Também aqui, com o abade de Lacordaire, poderá dizer-se que “c’est la liberté qui opprime et la loi qui affranchit”.

4. A dissolução de categorias, a cedência das construções dogmáticas aos comandos imperativos da «razão económica», a fragilização dos conjuntos normativos teoricamente organizados em disciplina autónoma, vão certamente afectar a natureza e a função de arbitramento judicial nas questões de trabalho.
A desjudicialização das noções e categorias limitam a intervenção prudencial do juiz.
Nestas circunstâncias, a reinterpretação dos limites da intervenção judicial vai colocar os tribunais na exigência de revisitar e densificar os princípios e as formulações constitucionais, retomando-os na dimensão operativa de aplicabilidade directa; em momentos decisivos o direito do trabalho é também direito constitucional em acção.
Mas há igualmente princípios e compromissos constitutivos das democracias sociais que, para além de serem formas normativas, constituem verdadeiros modos de comunicação política de injunções vinculativas.
Não podem ser desconsideradas as garantias inscritas na Carta Social Europeia e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Por vezes, afirma-se que os princípios precisam do apoio do poder para enfrentar o teste da realidade.
Mas devemos dizer antes que o poder precisa dos princípios para afirmar a substância democrática da legitimidade da acção.
O direito ao trabalho, o direito a condições de trabalho equitativas, o direito à segurança, o direito à negociação colectiva, os direitos sindicais, a formação profissional, bem como a protecção contra os despedimentos sem justa causa, constituem outras tantas imposições que integram o núcleo não renunciável das obrigações constitutivas e constitucionais do direito do trabalho.

5. O direito do trabalho e os seus campos de acção foram invadidos pela insegurança e pela incerteza.
Neste tempo sombrio, mais do que «aprender a rezar na era da técnica», há que transformar a fé em razão e reverter, na expressão de Alain Supiot, ao espírito de Filadélfia.
O Congresso que agora termina os trabalhos constitui um modo relevante de intervenção na crise, e compromisso intelectual para transformar a fé em razão.
Os temas abordados revelam que enfrentou problemas; agiu, não ficando na passividade da reacção; discutiu e recentrou a função operativa de princípios constituintes, como a dignidade da pessoa humana; elaborou sobre as circunstâncias do momento, preservando categorias nucleares do direito do trabalho; e fez salientar a função fundadora e correctora da igualdade."

António Henriques Gaspar





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