26 setembro 2011

 

A lógica é uma cena que não me assiste

"Ontem na Assembleia da República debateu-se o enriquecimento ilícito. Há cerca de quatro anos que PCP e BE lutam para verter na lei uma simples questão: quem aufere remunerações que não justifiquem o seu património deve explicar a sua proveniência. Esta proposta tem contado com a oposição do PS (e do CDS sempre que o seu voto é decisivo). Num absurdo juridiquês, dizem que pode estar em causa a inversão do ónus da prova. Zeloso argumento que só funciona para os ricos. O pobre, quando se candidata ao RSI, tem de provar tudo e mais alguma coisa sobre si e sobre os seus."


Há qualquer elo lógico em falta na opinião acima transcrita. Vejamos miudamente: quando alguém se candidata a beneficiário de rendimento social de inserção está a reclamar uma prestação do Estado; inversamente, quando o Estado acciona penalmente alguém por alegado (note-se: "alegado" e não provado, pois a prova nos países civilizados vem depois da acusação; sendo chato, um mínimo de "juridiquês" é em qualquer caso indispensável para perceber os contornos fenomenológicos e legais do) "enriquecimento ilícito" está a "pedir" alguma coisa a um cidadão - está a pedir que lhe "entregue", por uma ou outra via, a diferença entre o que aquele cidadão estava em condições (lícitas) de auferir e o que ele efectivamente percebeu. Por outro lado, este ónus do cidadão - e em todas soluções propostas é o cidadão quem, na prática, terá de suportar o ónus de provar a proveniência lícita dos seus rendimentos - não tem como reverso, no caso de não ser satisfeito, a não concessão de uma prestação pelo Estado (como sucede no caso do RSI), mas sim uma sanção penal: multa, prisão, etc. (se bem que em certa medida as penas também possam ser consideradas "prestações" do Estado; mas prestações peculiares: resolvem-se num mal e não num bem para o destinatário delas*).


Como se vê, o que está aqui em causa não é nem mais nem menos do que a questão central de um Estado minimamente digno de ser levado à conta de liberal, isto é, que tenha a liberdade na linha da frente das suas preocupações. Ora, o comentador dono das palavras acima transcritas não ignorará por certo que o "juridiquês" mesquinho em que se resolve o princípio da presunção da inocência serve, precisamente, para obstar a intervenções excessivas, não justificadas por banda do Estado. Breve, é uma forma peculiar de traduzir o mais genérico princípio da presunção de liberdade:querendo nela interferir, é o Estado que tem o ónus de provar que a intervenção é justificada do ponto de vista dos princípios "juridiqueses" consagrados na Consitituição da República. É tudo isto que falha naquela errada opinião.


(*) Um mal, disse, porque é essa visão da pena a mais fiel a uma mundividência liberal; Hegel via-a como a negação da negação (que é o crime), isto é, como um bem. Mas esses pormenores juridiqueses-filosóficos não são para aqui chamados.







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