17 maio 2011

 

Os opinadores e a Justiça "made in USA"

De ordinário os fazedores de opinão domésticos têm uma de duas visões da América: amam-na ou odeiam-na. Tudo que vem do lado de lá do Atlântico ou é o melhor ou é o pior. Não raro, a Justiça é um dos temas à volta do qual se gera um sem número de crendices mal alinhavadas; para uns, é a melhor do Mundo; para outros, a pior. Poucos são os que se dão ao cuidado de pensar, de submeter as suas opiniões ao escrutínio da razão e do estudo, de cotejá-las com factos, que são de acesso mais ou menos fácil. E, em boa verdade, nem sentem necessidade disso, pois a questão não é de factos e nem de razão. É uma espécie de religião - e, como se sabe, as "verdades" da religião não são refutáveis, não são falsificáveis. Se o fossem, não eram "verdades" religiosas - o critério das crendices não é a razão, mas a fé. É por isso que para esses fiéis (ou infiéis, depende do ponto de vista), qualquer aspecto da Justiça norte-americana, seja bom ou mau de acordo com uma análise modicamente racional e empírica, é defensável: tudo depende do lado da linha ideológica em que se postam. Há sempre uma maneira de defender ou de refutar uma evidência, há sempre um argumento que permite tornar bom ou desejável o que qualquer pessoa que nas suas opiniões não seja tão só iluminada pela crendice por força consideraria mau. E se isso falhar, há sempre mais um argumento, e outro e outro...


Vimos esse tipo de atitude aquando do caso Seabra. Aquilo era tudo "eficácia". Nenhum dos modernaços opinadores indígenas se questionou se não era um tudo-nada excessivo o homem (que também lá se presume inocente) só ter sido ouvido por uma juíza cerca de uma semana depois da detenção (cá seriam 48 horas); nem lhes ocorreu que a família dele teve de vender ou hipotecar a casa para garantir a defesa (cá, não tendo condições para pagar, era gratuito); nem os incomodou o facto de as declarações prestadas perante a polícia (sim, a da América, que tem uma incomparável tradição de brutalidade) o comprometerem no julgamento; ou ainda que a pena que enfrenta é pura e simplesmente impensável em qualquer outro país ocidental (isso, claro, se entretanto não for negociada, que ali é tudo business). Houve mesmo um Sr. jornalista que ficou impressionado (hó pacóvios!) com uma declaração do procurador encarregue do caso de que, na América (e por ser na América, claro), o Sr. Seabra beneficiava de uma "garantia adicional", que era, nem mais nem menos, do que o grand jury. Esta última foi porventura das maiores imbecilidades que alguns dos papalvos domésticos engoliram. Um tal elogio só podia provir de um ... prosecutor. Pois aquela figura é hoje um mero fantoche nas mãos do "MP" estadunidense. É verdade, foi uma figura que, historicamente, pela sua composição popular, teve um grande relevo na amenização das perseguições políticas da coroa inglesa em território americano. Hoje, faz o que o prosecutor quer e nas costas do arguido. Só quem nunca leu (ou finge que não leu) uma única página sobre o assunto é que não sabe que é assim. Mas a bondade dela sempre se pode explicar por um qualquer outro argumento que agora não me ocorre.


Agora, o caso DSK está a gerar mais uma onda de fervorosa religiosidade jurídico-comparada. É mais uma oportunidade para dizer mal da casa. Um ilustre comentarista nacional - por sinal um dos que mais aprecio - exulta com a Justiça made in USA (Pedro Lomba, Público 17.5.2011, "A queda de um anjo"). Implícita no texto está a ideia de seria impossível prender o Sr. Strauss-Kahn em Portugal. E isso talvez seja verdade. A Justiça lusa, tal como aliás as suas congéneres europeias, sobretudo as de matriz continental, têm com efeito um compromisso mais ténue do que a Justiça norte-americana com a ideia de igualdade formal perante a Lei. Inversamente, a Justiça norte-americana tem um compromisso muito mais frágil do que a europeia com o princípio da dignidade do cidadão arguido. Não é aqui lugar para perorar sobre as razões histórico culturais que explicam essas diferenças, razões que foram recentemente expostas de modo magnífico por um prestigiado comparatista e historiador do Direito. Deixo ficar apenas essa constatação, para ulteriores desenvolvimentos: a nossa (europeia) vantagem é o defeito "deles"; a vantagem deles é o nosso defeito.


Mas, voltando ao nosso opinador, diz ele duas coisas que suscitam reflexão e justificam sincera crítica. Um dos aspectos que louva é o de DSK, na sequência de várias diligências céleres e eficazes (pois aquilo é a América!), ter sido apresentado a um tribunal criminal "de algemas atrás das costas" (é a regra, porventura sem excepção, nos EUA; é, segundo creio, a excepção em todos os países europeus). Pergunta-se: porque é que isso é bom? Que razões justificam as algemas (e quatro o cinco rapazes tronchudos)? E, como se vê frequentemente, o que justifica os fatos às riscas (e, em alguns locais, "cor-de-rosa")? E algemas de pés e mãos? Não se trata, ainda, de um fulano que não foi julgado? Então, à míngua de concretas razões de segurança, porquê as algemas? Para o fazer "sentir-se como preso"? (por isso, faz parte e é tolerado na cultura dos guardas das penintenciárias norte-americanas atitudes como cuspir ou insultar os presos), como diz o autor para onde remeto acima? É essa a glória?


Mas Pedro Lomba diz mais. Referindo-se à incensada Justiça norte-americana, diz ainda que ela é feita com "uma clareza e previsibilidade, que não parece sacrificar nehum direito". Não percebo muito bem o que pretende significar com a "clareza", mas concordo com a "previsibilidade". Na América das sentencing guidelines as molduras penais, a mais de brutais, são estreitíssimas, sendo por isso que DSK "arrisca" (como se diz agora na tagarelice jornaleira) uma pena de 15 a 20 anos. Em nenhum outro país - ao menos daqueles onde as pessoas se lavam - há molduras destas. Mas elas são estreitas e brutais não por causa da Justiça, mas por causa da negociação (95 a 95% dos casos decididos nos States). Só é possível a negociação de penas (e também dos próprios factos!) à escala norte-americana, ali onde as molduras sejam efectivamente muito estreitas e elevadas. São elas que "alavacam" e replicam o poder de negociação do prosecutor. Isto é que é a verdadeira "previsibilidade" da Justiça norte-americana. Não tem nehuma "clareza". Pelo contrário, um tal sistema esconde hipocritamente as suas intenções (precisamente nos tribunais nova-iorquinos, os mais radicais em matéria de negociação, pode-se mesmo negociar o objecto do processo; em termos mais enxutos, posso acordar com o prosecutor que numa rua sentido único há dois sentidos...). Mas o que causa mais espanto é a ideia (não passa disso) de que aquele sistema "claro" e "previsível" "não parece sacrificar nenhum direito". Muito embora o cronista - é justo dizê-lo - fale apenas do que "parece" (e, como bem se sabe, nem sempre o que parece é), uma tal afirmação não lembra o Diabo! Vejamos uns números e frisemos uns aspectos, daqueles que vêm em estudos (norte-americanos, aliás) e não são o produto de profissões de fé.


Em 2005 (e está em crescendo) cumpriam pena de prisão na América cerca de 2 200 000 pessoas, sendo que 123 000 delas cumpriam prisão perpétua. O ratio de prisioneiros por 100 000 habitantes era de 737 (1 em cada 138 pessoas); e 1 em cada 20 crianças norte-americanas estará, em algum momento da sua vida, presa. Se se tiver em conta pessoas em liberdade condicional ou em regime de prova, o número ascende as uns estapafúrdios 7 000 000 de pessoas sob controlo do sistema penal! Estando em cumprimento de pena de prisão, no Mundo inteiro, cerca de 8 000 000 de pessoas, mais de 1/4 cumpre-a nesse glorioso sistema penitenciário que é o norte-americano. Muita dessa gente - a maioria mesmo - cumpre penas por crimes não violentos. O Supremo Tribunal Federal não reconhece, com consistência, um princípio de proporcionalidade como limite à aplicação de sanções (esta é ao cuidado dos autoproclamados liberais) e, assim, as penas de prisão aplicadas naquele país são 5 a 10 vezes (!) mais gravosas do que as propinadas na França ou na Alemanha (semelhantes às aplicadas em Portugal e no resto da Europa). Não é de estranhar, neste contexto, a aplicação de prisão perpétua a um indivíduo que furtou uma fatia de pizza, só porque em alguns Estados "à terceira é de vez". A questão é: são esses os sintomas de um sistema penal de excelência? Ou são antes de um sistema penal esquizóide? E por acaso se quiser insistir no argumento consequencialista (e é disso que se trata na mera inocuização penal, que é o que por ali grassa), esse sistema (e independentemente das "pentelhices" - como agora se diz - mediático-jornalinhas) tem-se mostrado eficaz no combate ao crime? E, se é, porque é que ele sobre sempre em flecha?


Isto vai longo, mas há mais. Parece que (resulta também do dito texto) que um recente acórdão de um tribunal da Relação é mote para todo o tipo de considerações sobre a Justiça pátria. Não me cabe - e nem posso ou devo - comentar a peça neste local. No entanto, admitindo a sua incorrecção para efeitos argumentativos, não se vê como pudesse macular irrevogavelmente toda a Justiça nacional (e, suponho, que as válidas razões de queixa dela não se focam primeiramente no conteúdo das decisões), sobretudo diante da luminosa Justiça made in USA. Não é nesse país que se julgam menores como se fossem adultos, ao ponto de há não muito tempo se ter pretendido julgar assim uma criança com 6 anos de idade? Não é aí que se executam doentes mentais? Não é nesse país que ainda se pune criminalmente a prostituta e só há bem pouco tempo deixou de ser punida a prática privada e consentida de actos homossexuais? E também não é nesse mesmo país que um cidadão pode ser perseguido pelo mesmo crime ao nível estadual e federal, e ser condenado duas vezes, sem violação a regra da proibição da double jeopardy? E também não foi aí que um alto responsável do "MP" veio à televisão dizer (que aquilo lá é preciso o voto), aquando da detenção de um conhecido administrador de uma multinacional, que tinha a esperança de que ele fosse posto numa cela junto de agressores sexuais? Ou ainda não é nesse país que se defendem, e aplicam, doutrinas paleolíticas da responsabilização penal sem culpa? (note-se: não é a decisão de um tribunal; é uma doutrina partilhada pelos tribunais e não raro vertida em forma de lei).


Muitos nosso compatriotas têm justíssimas razões de queixa (nomeadamente em termos de eficácia) do sistema de Justiça (quem tem culpa é questão que daria para 10 postais destes). E por isso, mesmo alguns dos informados acima da média deixam-se levar pelas lendas (às vezes são piores do que lendas, são lendeas mesmo) que diariamente lhes servem na televisão e nos jornais. Fartos da ineficácia nacional, desejam ardentemente aquela "eficácia" dos States, esquecendo que essa "eficácia", esse tipo de "eficácia", tem um outro lado menos sorridente. É daquelas em que o bebé vai junto com a água suja. Por isso convém ter cautelas, não exagerando. Comparações com os States podem trazer algumas surpresas.





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