30 abril 2011

 

Um problema de "meritocracia aplicada"

Não vou aqui dizer que a Justiça está de saúde porque efectivamente não está. Também não me proponho afirmar que a maleita é de toda a Justiça, como efectivamente não é (se a acção executiva é um desastre - que, sem rebuço e tibiezas, deve ser endossado ao poder político - já por exemplo os recursos, nomeadamente os penais, são rápidos no panorama comparado). Hoje, qualquer declaração pública ou privada - num jornal, num blogue, num café, seja onde for - como a que a que acabei de fazer sobre o tempo dos recursos penais, que enalteça (e mesmo que acompanhada da proclamação de um ou outro facto constante de estudos internacionais abalizados) ou mesmo que tão são não diminua o sistema de justiça pátrio é imediatamente anatematizada.


Se é verdade que há razões de queixa objectivas, a expressão subjectiva da insatisfação popular (e não só, pois no desprestígio do sistema pontificam muitos responsáveis) pouca relação tem com aquelas. Tal insatisfação é desproporcionada e roça já o preconceituoso - e como alguém já disse (julgo que foi Einstein) "é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito". Quem, mais ou menos atento e de modo sereno acompanha os tortuosos rumos da vida pública e política lusa dos últimos anos sabe bem quais as razões que nos trouxeram até este doloroso e perigoso estado de desprestígio, de entre as quais não se contam, apenas ou primeiramente, os actos e omissões de quem dia a dia faz o melhor que pode e sabe nos tribunais. Julgo que não vale a pena perder tempo com tais muidezas, que além do mais são politicamente incorrectas.


Vem isto a propósito de mais uma daquelas ideias - para não designar a coisa de modo mais rústico - que não passa de uma articulação tosca de superficialidades mal reflectidas e menos ainda ponderadas acerca dos problemas da Justiça. Apresentada como "novidade" (uma espécie de fusão a frio da teoria da organização judiciária) é, no fim de contas, "velha e relha": "aplicar a meritocracia aos juízes"; "metodologia" que poderia ser propinada quer à "quantidade" de despachos quer à "qualidade" deles. Devo dizer, em primeiro lugar, que nunca me tinha ocorrido que a "meritocracia" se "aplicasse". Assim, em geral. Depois, fica a sensação que o ilustre autor da proposta dá de barato que os juízes únicos são os únicos (não só não são os únicos, como há muito são avaliados por critérios de mérito; bons ou maus, são melhores do que a nomeação partidária) a quem não foi ainda "aplicado" o eficaz remédio da "meritocracia". Supõe-se, pois, que são os botas-de-elástico da organização jurídico-política e judicial, o último e bafiento reduto da "mediocracia". Parece, assim, que a tal "meritocracia" já foi "aplicada" aos advogados (e, de facto, basta atentar no representante eleito dos mesmos, nomeadamente nas suas recentes performances mediático-jornaleiras) e, sobretudo, aos políticos (com resultados brilhantes, como se presume vir a ser certificado pelo FMI e agremiações afins).


Por outro lado, não explica bem o ilustre causídico proponente como "aplicar" a meritocracia à "quantidade" de despachos. Saberá, espero bem, que "despachar" não é bem "despachar": é decidir. E decidir não é o mesmo que encher chouriços. E o número de chouriços em Lisboa não é o mesmo que em Baião. E há sempre a possibilidade de um juiz menos aprumado do ponto de vista deontológico dar sistemática preferência aos chouriços mais fáceis de encher (a "complexidade" dos processos é coisa muito fluída e não falta quem a confunda com o número de folhas...). E muito mais que em matéria de enchidos se poderia aqui impugnar.


Vem depois a "qualidade" que, de acordo com o proponente, extrair-se-á, de modo simples e liso, da taxa de sucesso ("vencimento") dos recursos (sempre as taxas, sempre as percentagens...). Pormenores como o perfil deontológico do juiz, seu comportamento processual, relação com os demais intervenientes no processo e com os cidadãos, modo como administra o tribunal, e uma miríade de outros factores, dificilmente mensuráveis mas na verdade essenciais, parece que devem ficar pura e simplesmente dissolvidos na "taxa" ou na "percentagem" - ou melhor: no "vencimento" (tudo palavras - "meritocracia", "vencimento", etc. - que fazem de imediato soar as campainhas de qualquer cidadão moderno, progressista e desempoeirado). Sucede que também esse "vencimento" (palavra que julgo imprópria para designar o mérito de um juiz; nunca me julguei "vencedor" ou "vencido" em qualquer processo), visto desse jeito sincopado, é manipulável (atitudes "defensivas") e, a mais disso, se não for corrigido por outros critérios, é susceptível de levar a uma atitude "cinzenta" de pouca ou nenhuma ousadia em matéria de interpretação jurídica. O resultado é óbvio: "anquilosamento" jurisprudencial. Um aparente paradoxo que se desfaz quando se leve em consideração as leis e regulamentos que já hoje regem a avaliação do mérito dos juízes (sendo certo que tenha esta os defeitos que tiver - e tem-nos, certamente - não há por esse mundo fora sistemas perfeitos de avaliação, mesmo que assentes numa vagamente científica "meritologia aplicada") mandam que se leve em conta não apenas a citada "quantidade", como a muito apreciada "qualidade" (que não é o mesmo que "acerto", pois convinha não esquecer - e afloram uns "tiques" que apontam nesse sentido - o princípio da independência dos tribunais), critérios que sendo indubitavelmente relevantes, muito relevantes, só o são quando mediados por muitos outros (acima referidos), que precisamente servem para mitigar os efeitos deletérios de uma aplicação simplista daqueles dois ("quantidade" e "qualidade").


Toda esta requentada ideia - bem ao gosto da pós-moderna lógica actuarial que se pretende que impere onde não deve (Justiça) e que não impera onde deve (Finanças Públicas) - esconde, por rectas contas, um preconceito e assenta mais uma vez num pressuposto que convinha demonstrar: os juízes não trabalham, são mandriões (insisto, tão só a título de exemplo, que o apuramento das responsabilidades políticas pelo estado actual da acção executiva, aí sim com efeitos tremendos, trágicos, sobre a economia nacional, seria muito instrutivo). É a reedição da fábula das férias judiciais, que deu no que deu e significou o que hoje se sabe. Com uma diferença: aquela fábula só foi contada ao povo no dia em que o actual governo chegou ao poder...







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