04 agosto 2009

 

Divagação imaginária sobre a gripe

Quantas vezes, a propósito do surto viral da gripe cujo nome não me vem à mente (digamos, para simplificar, com licença da espécie de onde se diz provir, a gripe suína), não me tenho lembrado do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago!
A criação de um certo clima, algumas situações observadas ou entrevistas no desenvolvimento da pandemia que está a avolumar-se por toda a parte com consequências ainda imprevisíveis, podem-nos dar uns vislumbres, uns ecos esbatidos, mas carregados de sombria sugestão, do universo ficcional construído pelo escritor laureado com o prémio Nobel.
Desde o alerta causado pelos primeiros vitimados e que tem ido em crescendo, à medida que a patologia se vai multiplicando, até aos signos representativos do avançar da epidemia – grau 4, grau 5, grau 6, o máximo na escala de alarme – à colocação em quarentena dos afectados, aos constantes alertas sobre a possibilidade de contaminação e a maneira de evitá-la ou atenuá-la, ao arsenal higiénico a usar (as máscaras, o lavar frequente das mãos, os desinfectantes), aos múltiplos veículos de transmissão da doença contra os quais nos devemos premunir, ao anúncio das primeiras mortes, às notícias de quase «sequestro» dos doentes nos hospitais, isolados nos seus quartos, praticamente sem visitas do pessoal clínico, que ali comparece apenas uma ou duas vezes por dia, totalmente encafuado em fatos que cobrem os corpos da cabeça aos pés e comunica com os infectados através de aparelhagem electrónica, aos conselhos dados a quem tenha sintomas patológicos de notificar esse estado às autoridades sanitárias, as quais, chegando a casa do «suspeito», saem do carro em que se deslocam com a tal vestimenta de extraterrestres, ao deserto gerado à volta de qualquer pessoa que, num ajuntamento, se ponha a tossir ou a espirrar, ao açambarcamento, nas farmácias, de material higiénico e de medicamentos para a cura, à esperada vacina que não chegará para todos e que é preciso racionar de acordo com uma pré-definição de grupos prioritários, enfim, todo um ambiente saturado de ameaça e onde não falta o enigma existencial.
A todo este cenário junte-se a enorme carga sugestiva do acontecido no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em que vários doentes internados no sector de oftalmologia ficaram cegos após uma injecção intra-ocular de um medicamento que supostamente seria para a sua cura. Precisamente um grupo de seis, tantos quantos os que formavam o grupo inicial de cegos, guiados pela mulher que via (a mulher do médico), no Ensaio sobre a cegueira.
Claro que isto não chega para nos dar o clima ficcional da obra de Saramago, que, de resto, não se reduz a um clima, assumindo uma dimensão problematizante e alegórica de largo espectro, em que o escritor nos dá uma visão do mundo e do ser humano que não primam pelo optimismo. Antes pelo contrário, as facetas mais egoístas e sórdidas do ser humano, as pulsões mais negativas e monstruosas, as tendências criminosas mais repulsivas, as situações mais abjectas, fazendo despontar o abutre que mora em cada um de nós, são enfatizadas num cenário que, começando por ser de quarentena, se transforma num lugar concentracionário e inumano.
Estamos muito longe desse universo ficcional, que aqui evoco com um evidente sentido de exagero, a que fui conduzido por sugestão de algumas peripécias. Mas, sendo a ficção ela própria um exagero, não nos ajudará ela também a aceder ao abismo cujas profundezas podemos antever a partir de certos traços existenciais em estado de latência e que, levados a certo limite, nos transportam para um mundo terrífico onde a nossa precária humanidade entra em colapso e se transforma na mais cruel cegueira?





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