06 julho 2009

 

O discurso do vice-presidente

Com atraso, devido a circunstâncias técnicas do blogue, publico aqui o meu testemunho:

Em boa hora o Maia Costa publicou neste blogue o discurso do vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar (permitam-me, ao menos aqui, que não trate os meus colegas por V.ª Ex.ª, nem por Senhores Conselheiros), proferido no acto da sua posse.
Aguardei-o com expectativa e ouvi-o com toda a atenção. Do que ouvi, ficou-me a sensação do altíssimo nível e da densidade do texto, mais próprio para ser lido do que para ser ouvido, ainda por cima com o aguilhão do tempo a esporear o ritmo da leitura. Mas a audição foi já um prelúdio para a sua fruição e assimilação em silêncio e depois para a sua partilha. A publicação do discurso no blogue é já um acto de partilha, apelando a uma leitura elaborada pela comunidade de leitores, significando também que o blogue pode ser um lugar para a publicação de textos de qualidade e não só para a opinião e o comentário apressados, ligeiros, em cima do acontecimento e tendo como cânone fundamental a simplicidade da mensagem, quando não o simplismo mais redutor ou confrangedor. A isso acresce a necessidade de furar o bloqueio dos «media» tradicionais, que frequentemente ignoram o que exorbita do estereótipo ou o que sai das margens do anedótico, do sensacionalístico ou do «fait divers». Ainda mais quando se trata do «fenómeno judiciário», intencionalmente confinado à actuação das magistraturas e só constituindo matéria noticiável aquelas ocorrências que real ou ficiticiamente, ou deformadas por desfiguração propositada ou por simples ignorância, reconfirmem a imagem já adquirida de inépcia e de descalabro. É decepcionante ver que mesmo figuras com responsabilidade política, intelectual, social ou moral fazem afirmações na praça pública, a respeito do judiciário, assim redutoramente concebido, que tocam as raias da mais crassa ignorância.
Um dos primeiros méritos do discurso é rebelar-se contra esse clima, não de um ponto de vista corporativo, mas de uma forma informada, objectiva, culta, democrática e com enquadramento numa multifacetada visão dos problemas do nosso tempo. Só por si, o discurso é um acontecimento que enriquece o património da reflexão sobre o problema judiciário, representando o mais claro desmentido da «caquexia» em que muitos pretendem encerrar o nível mental dos actores judiciários, sobretudo se exercem funções no mais alto escalão (maxime, no Supremo Tribunal de Justiça), figurando entre esses certos meios de comunicação social especializados em espiolhar nas decisões judiciais manifestações de decadência e senilidade, pelo recurso a métodos de pouca ou nenhuma seriedade intelectual, quando não literalmente fraudulentos. Se não fosse essa ideia preconcebida ou o claro objectivo de ignorar o que, de notável e relevante, também se faz, não obstante os erros e as gafes que se cometem no dia-a-dia dos tribunais, como em qualquer outra actividade ou função, este discurso teria merecido o devido destaque nos «media». Mas ele destrói estereótipos, ideias-feitas, deturpações e simplismos prontos a servir e a comer, à semelhança de um fast food informativo muito em voga. E destrói-os com superior inteligência, numa articulação de razões e factos, de motivações e enquadramentos, de rigor e denúncia. É claro que a estruturação e a densidade de pensamento que daí resultam, bem como a contradição de uma certa ideia de «politicamente correcto» que vigora em matéria de justiça, constituem contra-indicações para uma comunicação social que ajudou a construir uma dada imagem do judiciário e que aposta em mensagens estereotipadas.
Para contrariar esta tendência, que atingiu «níveis e dimensão de ruptura» (há tempos, em editorial do «Expresso» chegou-se a afirmar que, já que a justiça não era capaz de se auto-regular, devia essa regulação ser imposta de fora pelo poder político, o que revela bem o nível de desaforo que se atingiu e a concepção que certos responsáveis da comunicação social têm do Estado de direito democrático) Henriques Gaspar propõe o reequilíbrio, nesta assimetria de intervenção, pelo exercício do contraditório, a insistência na «desconstrução de alguns mitos», de que o seu discurso representa, aliás, um bom paradigma, e adopção de «uma estratégia que permita inverter o desregramento da má informação e da opinião mal avisada, que são factores de descredibilização do sistema de justiça», advertindo contra o aparecimento de «um jacobinismo tardio e pós-moderno».
Mas não se fica por aí, por essa estratégia, digamos, de contra-ataque, insistindo na necessidade que as instituições de justiça devem sentir em ordem a «compreender e interpretar os sinais de desconfiança democrática, perceber e reverter os desvios de racionalidade e aprender as expectativas dos cidadãos», apostar na qualidade e no rigor de uma postura deontológica e de vida.
Em suma, este discurso não é uma mera peça de oratória. É um óptimo exercício de análise e lucidez e um acto que implica consequências. Depende da nossa vontade o assumi-las e realizá-las desde já.





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