22 abril 2009

 

A suspeita como fundamento da punição

Já disse, aqui, o que pensava sobre o crime de enriquecimento ilícito nos termos propugnados por um partido. Como parece que o monstro ressuscitou, nos últimos tempos, como sempre sucede quando ciclicamente a pátria se lembra de que aqui há “corrupção”, queria tão só lembrar mais uma ou duas coisas.

Uma primeira observação, que não deixa de ter um sentido, por assim dizer, sintomático, é a de que, bem vistas as coisas, além de certos políticos, por razões eleitoralistas, apenas uma “classe” se posta clara e substancialmente a favor da incriminação do enriquecimento ilícito em termos de serem violados certos princípios constitucionais: a daqueles ligados à investigação criminal (com excepções honrosas, é claro). A razão é óbvia: uma inversão do ónus da prova, em matéria penal, retira muito trabalho a quem investiga: na exacta proporção daquele que é colocado sobre os ombros da defesa. É este o encanto, a magia, de uma tal incriminação. Neste particular, demagogia e preguiça andam de mãos dadas.

Em segundo lugar, um tal modo de perspectivar a função e os fins do Direito penal é própria dos que entendem que tal ramo de direito não é, não deve mais ser, a Magna Carta do delinquente, a barreira infranqueável da Política Criminal ou, numa perspectiva mais moderna, ele próprio um repositório de orientações político-criminais próprias de um Estado de Direito Democrático. Não: à boa maneira securitária, o Direito penal passa a ser a Magna Carta da vítima, com a particularidade de o ser, precisamente, nos crimes sem vítima, ou, o que é o mesmo, naqueles em que a “vítima” é o Estado. É aqui, precisamente aqui, que medram os chamados crimes de suspeita (que de modo invariável ou quase protegem bens ou valores que não radicam no indivíduo), aqueles em que certos elementos do tipo de crime (enriquecimento ilícito) se inferem perigosamente de outro ou outros elementos (desproporção entre património e rendimento conhecido).

Com isto não se menoscaba apenas o princípio da presunção da inocência. Se bem que este seja o ponto mais referido na discussão a que se tem assistido, crimes daquela natureza também desconsideram outros aspectos essenciais da gramática penal, como é o caso do princípio da culpa, também ele com dignidade constitucional se se admitir que flúi da dignidade da pessoa (artigo 1.º da CR). Este último aspecto, aponta, assim, para um Direito penal de base deontológica e avesso a uma configuração que atenda apenas ou maioritariamente a aspectos utilitaristas. Os proponentes de tal incriminação deviam pois, revisitar a distinção dworkiniana entre políticas e princípios: uma política, em si mesmo legítima e até desejável, que pretenda, pelo combate à corrupção e criminalidade afim, alcançar uma maior transparência democrática não pode deixar de ser limitada por princípios de justiça e equidade, de entre os quais se deve considerar, com proeminência, o princípio da presunção da inocência e o princípio da culpa. Só não é assim, claro está, quando princípios e políticas se confundem, quando aqueles se funcionalizam a estas à boa maneira utilitarista de modo a assegurar a máxima felicidade para o maior número (leia-se, o maior número de condenações, ainda que meramente “formais”). O transe da obtenção de resultados não pode, pois, deixar de se alcançar à custa dos princípios (ou, como de modo feliz e bem mais plástico se disse num postal abaixo: a culpa há-de “casar à força)”. E não é mais do que isto o que se pretende com o crime do enriquecimento ilícito.





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