23 março 2009

 

Preservativo não, obrigado.

Ainda na viagem aérea para os Camarões, o Papa disse que o preservativo não era solução para a sida. O uso do preservativo, quanto a ele, não resolve problema nenhum, antes agrava a situação. Foram palavras que indignaram muita gente. Pulido Valente, na sua crónica de sexta-feira no “Público” e já antes num debate na TVI 24 horas, achou bem que as pessoas se indignassem, mas chamou a atenção para o lado compreensível dessa posição. O Papa não podia tomar outra, sob pena de trair a própria Igreja, de que é o representante supremo. A Igreja quer evitar a promiscuidade sexual, que o preservativo favoreceria. Para a Igreja, tratar-se-ia de manter os valores que sempre defendeu: castidade antes do casamento e fidelidade depois do casamento. O Papa tinha, inclusive, o direito de sustentar essa posição.
Há aqui, segundo creio, algumas confusões. Em primeiro lugar, a Igreja é formada pela comunidade dos fiéis e se há domínios onde há grande divisão entre os fiéis e na própria hierarquia, um deles é o do uso do preservativo. A Igreja não é o Papa, arriscando-se este, como se tem visto, a aprofundar essa divisão e a perder o leme de comando do barco que dirige. Muitos dos manifestantes são católicos.
Em segundo lugar, as verdades que a Igreja defende, ainda que muitas vezes a coberto de dogmas, também não são imutáveis, bastando ter uma perspectiva histórica sobre muitas das verdades que a Igreja tem assumido ao longo dos tempos. De forma que o Papa, ao defender a posição que defende, não faz mais do que assumir uma das correntes mais conservadoras, dentro da própria Igreja, sobre o uso do preservativo.
Em terceiro lugar, hoje, praticamente ninguém segue, mesmo entre os católicos (há excepções, claro) o lema da castidade antes do casamento, e essa é uma das batalhas perdidas da Igreja. Por outro lado, para a posição mais conservadora da Igreja, não basta a fidelidade no casamento; também é preciso a castidade. É que se fosse só o problema da fidelidade que estivesse em causa dentro do matrimónio como sacramento indissolúvel (que só surgiu como tal, como se sabe, no Concílio de Trento), então os casais podiam usar o preservativo como meio de gerirem autonomamente a relação e controlarem o número de filhos que pretendem ter (planificação familiar), mas não é isso que a hierarquia prega, e nisso também já perdeu a batalha, porque os católicos também já aprenderam que o relacionamento sexual não visa só nem principalmente a procriação, mas é um meio legítimo de obter prazer e de conseguimento da plenitude da expressão amorosa.
Em quarto lugar, segundo creio, a hierarquia da Igreja nem sequer admite o uso do preservativo para evitar a disseminação da sida, mesmo entre casais em que um dos parceiros está infectado. Ainda há dias vimos a notícia, segundo a qual um individuo, na Itália, conseguiu a anulação do seu casamento pelos tribunais eclesiásticos, com fundamento em que a mulher lhe exigia o uso do preservativo nas relações sexuais, fazendo-o ela para evitar justamente a transmissão de uma doença, que não era a sida, mas outra doença grave.
Em quinto e último lugar, o Papa falou, segundo se presume, para os católicos, mas fê-lo no âmbito de uma visita a países africanos que vivem a braços com o problema da disseminação da sida, que coabita com a miséria mais extrema e a total falta de informação, obstáculos que constituem uma barreira difícil de vencer para as organizações que, com grande esforço, tentam inverter o processo de propagação avassaladora daquela doença, que dizima milhares de pessoas. Neste contexto, a posição da mais alta hierarquia da Igreja constitui, tenho a certeza, um pecado muito maior do que o uso do preservativo.





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