23 novembro 2008

 

A responsabilidade social dos juízes

Este é o texto da minha comunicação no Congresso dos Juízes.

Proponho-vos uma breve reflexão sobre a responsabilidade social dos juízes.
Pode este conceito parecer-vos estranho, sabido como é que, no nosso sistema judicial, a responsabilidade dos juízes, e dos magistrados em geral, é de ordem jurí-dica, que não política, e por regra de natureza disciplinar.
No entanto, esse tipo de responsabilidade não esgotará a garantia de controlo e fiscalização a que deve ser submetida a função judicial.
A par da responsabilização institucional, a cargo do CSM, um outro tipo de responsabilidade, a que chamarei social, na esteira de Luigi Ferrajoli, se mostra essencial para a legitimação da actividade jurisdicional.
Em que consiste ela?
Basicamente na sujeição das decisões judiciais à crítica, quer especializada, quer da própria opinião pública, que é necessariamente mediada, nas sociedades actuais, pela comunicação social de massas.
Esta forma de controlo social, de natureza informal, não institucional, provindo de um ponto de vista externo ao sistema judicial, traduz em última instância uma forma de expressão de controlo popular sobre a justiça, de controlo do povo, em nome do qual a justiça é administrada, sobre a justiça tal como ela é praticada pelos magistrados.
Contudo, para que esse controlo não degenere em manifestações de populismo ou irracionalismo ou pulsões anti-democráticas, é necessário que várias condições, umas de natureza institucional, outras de carácter social, sejam preenchidas.
Entre as primeiras sobressaem a publicidade e transparência do processo, e a fundamentação das decisões.
A publicidade tornou-se a regra do processo penal, com a recente revisão do CPP, porventura até em termos demasiado amplos.
A transparência ficou reforçada, com a mesma revisão, com a possibilidade de expressão de votos minoritários, mesmo em matéria de facto, pelos juízes do tri-bunal colectivo ou de júri.
Um problema que habitualmente se discute, neste quadro, é o da transparência da linguagem das sentenças e outras decisões. Penso que em geral a questão é mal colocada, pois clareza e transparência da linguagem não se podem confundir com falta de rigor ou ligeireza. Pelo contrário, creio que o rigor e a correcção da terminologia jurídica não podem fazer quaisquer concessões à preocupação de facilitar a compreensão da decisão. O rigor não é incompatível com a transparência e a clareza da linguagem.
A fundamentação, que é um aspecto capital da própria legitimação da função jurisdicional, pelo controlo que abre sobre as decisões, permitindo não só às partes, como à generalidade das pessoas, apreender as razões e todo o percurso lógico que conduz à decisão, limitando assim até onde é possível a margem de subjectividade e arbitrariedade inerente a qualquer decisão humana, além de consagrada na CRP, viu o seu alcance ampliado à matéria de facto, com a revisão do CPP de 1998, que impôs o exame crítico das provas na fundamentação da matéria de facto.
Podemos pois afirmar que as condições institucionais têm um elevado grau de afirmação no nosso sistema jurídico, conferindo uma adequada base à responsabilização social dos juízes.
A dois aspectos me quero ainda referir, neste plano.
O primeiro é o da personalização da actividade judiciária. É que responsabilidade dos juízes não é colectiva, pelo que cada um deve assumir a sua individualidade. Quem decide não é um abstracto tribunal, mas sim um concreto juiz ou um determinado colectivo de juízes. A assunção personalizada das decisões pode funcionar como factor importante de responsabilização dos juízes.
Por outro lado, há que reconhecer que tem faltado, para o exercício de uma adequada responsabilização social dos juízes, a implementação, por parte dos tribunais, de estruturas que transmitam para a sociedade, de forma permanente, uma informação objectiva e rigorosa da actividade judiciária. Esse espaço é normalmente ocupado e aproveitado pelas partes ou outros interessados, que transmitem uma informação necessariamente parcial, quando não completamente deformada. A criação de gabinetes de imprensa (com este ou outro nome) será indispensável para a produção de uma informação genuína, que é uma condição essencial para a sindicação social da actividade dos magistrados.
Analisemos agora a outra vertente, a das condições sociais. Elas reportam-se a factores diversificados. Desde logo, a maturidade da opinião pública, o grau de qualidade do debate público, da intervenção cívica e política dos cidadãos e das suas organizações, da força e densidade da sociedade civil.
Neste quadro assume especial importância a existência e intervenção de associações, quer de cidadãos, mas vocacionadas para a intervenção em matéria de justiça, quer de profissionais do foro, magistrados, advogados, funcionários.
Nesse último aspecto, a existência de sindicatos de magistrados tem revelado aspectos francamente meritórios, aliados a outros menos positivos. Afirmo frontalmente que o associativismo judiciário, e o activismo daí resultante, têm sido um elemento essencial para a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária democrática. O isolacionismo ou atomismo dos magistrados, pelo contrário, enfraquece a sua independência, torna-os vulneráveis aos jogos de influência e de pressão. O associativismo judiciário português, que é uma “conquista” da democracia, não o esqueça-mos, foi um elemento preponderante da democratização do sistema jurídico e da cultura judiciária.
O associativismo judiciário assumiu em Portugal a forma de sindicalismo (foram e são irrelevantes, ou quase, os fenómenos associativos à margem dos sindicatos) e esse facto trouxe alguns problemas, concretamente os da conciliação da vertente meramente sindical (estatuto profissional) com a vertente formativa e crítica. Nem sempre as soluções adoptadas terão sido as melhores e certamente que muitos erros terão sido cometidos. O sindicalismo judiciário tem de assumir características muito específicas, dada a natureza das funções desempenhadas pelos magistrados, sob pena de poder resvalar perigosamente para o corporativismo e consequentemente para a sua descredibilização junto da opinião pública.
O reconhecimento do direito de tendência dentro dos sindicatos judiciários pode constituir um elemento propulsor de debate e mesmo de confronto de ideias e de programas, com o que os magistrados e a cultura judiciária só têm a lucrar. Também o aparecimento de associações civis de magistrados é bem vinda, desde que elas protagonizem programas e ideários, e não “personalidades” (e desde que não se arroguem a representatividade de toda a classe, que cabe naturalmente à ASJP).
Mas, no âmbito do associativismo, a grande lacuna é a da carência de associações representativas de cidadãos. É certo que algumas existem ou existiram até agora. Mas ou a sua actividade é nula, ou demasiado intermitente para ser relevante, ou são (ou eram) associações “capturadas” por personalidades (ou por uma única personalidade), não representando assim mais do que elas (ou ela) próprias.
Esta lacuna é um obstáculo decisivo para o estabelecimento de um debate sério e responsável sobre a justiça portuguesa e indirectamente para a responsabilização social dos juízes. A discussão pública da actividade judicial, para não cair em populismos e manipulações irresponsáveis, tem de ser intervencionada por entidades que sobre a justiça detenham uma visão competente, que reflictam “de fora”, mas de forma culta e responsável, a situação da justiça.
Só este tipo de associações, assumindo-se como representantes dos cidadãos, e intervindo de um ponto de visto cívico, pode constituir um “parceiro social” no debate e na crítica das práticas judiciárias, em que também têm direito de intervenção obviamente as associações públicas de profissionais do foro, embora estas se assumam mais como “sindicatos” dos sócios do que como promotoras dos direitos dos cidadãos.
Por último, uma outra condição é essencial: a da existência de uma comunicação social responsável, objectiva e isenta.
São bem conhecidas as práticas da imprensa e da comunicação social em geral, que procuram no sensacionalismo populista (ou popularucho), contra o rigor e a fidelidade ao dever de informar, o meio de prosseguir estratégias puramente comerciais, se não mesmo, por vezes, a execução de obscuras estratégias de deslegitimação dos tribunais.
Acontece, porém, que não há volta a dar-lhe. A função de informar, embora hoje, com o desenvolvimento da blogosfera e de outros instrumentos de comunicação, tenha estradas alternativas, que devem ser ampliadas e percorridas, é essencialmente exercida pelos meios de comunicação de massas: a imprensa, a rádio e sobretudo a televisão. São estes (sobretudo a última) que informam o “grande público”, e que formam (e/ou) deformam as opiniões e as tomadas de posição que a opinião pública adoptará.
Essencial se torna, pois, agir junto da comunicação social no sentido de ela exercer correctamente a função que constitucionalmente lhe está deferida: o dever de informar, o que significa evidentemente, informar com verdade e isenção.
É claro que sabemos bem que a comunicação social, nas mãos de um restrito número de grupos económicos, não é hoje um palco totalmente aberto e neutro, unicamente vinculado aos valores referidos de verdade e isenção. E mais: são escassos os mecanismos de controlo democrático desse espaço (vide a dificuldade de exercício do direito de resposta e também a reacção corporativa que gera qualquer tentativa de intervenção, nos termos da lei, por parte da ERC), geralmente rejeitados em nome de um conceito de liberdade de imprensa tributário de uma ideologia liberal exacerbada, que importa para o campo da comunicação social ideias e conceitos do neoliberalismo económico.
Mas a CRP impõe à comunicação social uma função essencialmente social e é imperioso exigir que ela a cumpra.
Concluo, assim, que, embora as condições institucionais tenham um elevado, ou pelo menos substancial, grau de efectivação, já o mesmo não sucede com as condições de natureza social. Em especial, a falta de associações cívicas vocacionadas para a intervenção na área da justiça e a quase inexistência de uma comunicação social que exerça uma função informativa e crítica das práticas judiciárias são um obstáculo evidente para a responsabilização social dos magistrados, e dos juízes em particular.
A intensa “informação” e emissão de juízos “críticos” produzidas sobre os tribunais pela comunicação social, nas actuais circunstâncias, não traduz qualquer forma de responsabilização dos juízes, porque não parte de pressupostos objectivos e informados, porque não procura a raiz dos problemas, porque, em suma, não procura informar, mas sim condicionar, e tantas vezes alarmar e mesmo assustar os cidadãos (como é exemplo flagrante a generalizada e persistente campanha sobre a insegurança do último verão).
Nestas condições, perante o ruído alarmante de uns e o silêncio de outros, ouve-se apenas um estrondo caótico que só dá passagem ao irracionalismo e ao populismo mais primário. Não há espaço para a responsabilização dos magistrados. Ou melhor essa responsabilização degenera em pura e simples deslegitimação. O que talvez não desagrade àqueles que não querem verdadeiramente um poder judicial independente e responsável, esquecendo (ou talvez não) que, sem ele, não há democracia.
O que podemos fazer então, nós magistrados, nós, juízes, nesta situação?
Penso que se exige de nós, neste momento crítico, um suplemento de esforço, um suplemento de auto-responsabilização, um acréscimo de empenho ético. A aprovação do código ético é certamente um passo essencial para vencer os obstáculos que se nos deparam. Aprová-lo e depois cumpri-lo.
É tudo o que se pode exigir de nós.





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