04 setembro 2008

 

Franz Von Liszt e o Presidente do CDS-PP

Já se sabe que a evolução da criminalidade violenta no primeiro semestre deste ano superou, em cerca de 10%, a registada para o mesmo período do ano passado. Já se sabe, também, que a taxa verificada este ano coloca-o de par, nesse particular, com anos como 2006. Também são relativamente conhecidas as mediações significativas que permitem que uma percepção social de insegurança de amplo espectro – derivada, de entre o mais, de mutações do sistema económico (recuo do Estado de Bem-Estar, taxas estruturais de desemprego, etc.), da degradação do meio ambiente, dos grandes riscos sanitários, da crise dos referentes identitários e de socialização que eram próprios da modernidade (crise da ideia de Nação, classe social, família e papéis relativos dos que a integram, por ex.) – se projecte sobre crescentes e concretas demandas securitárias e punitivas. Essas demandas assentam, assim, naquele o húmus próprio da tão propalada Sociedade do Risco em que o medo se assume como a tonalidade emotiva dominante e, um pouco por toda a parte, base de muita da actual irracionalidade político-criminal.

Como se sublinha numa recomendável e muito recente obra sobre o tema (Brandariz García, Política Criminal de la Exclusión, 2007), aquelas mediações significativas estabelecem-se essencialmente através da comunicação social e da retórica dos responsáveis pela segurança. Tal como o reducionismo discursivo (a recorrente dicotomia bons/maus) e a mitologia hiper-garantista ou da excessiva benevolência dos juízes (“a polícia prende eles, os juízes, soltam”) que são, neste particular, marca de água da narrativa dos media (ultimamente, entre nós, em crise de mania securitária após uma inexplicável e relativa fase depressiva em 2006), também o descuido retórico (para dizer o menos) por banda dos que têm autoridade institucional em matéria de segurança – por exemplo, imputando aos juizes uma conspiração no sentido de denegação da aplicação da prisão preventiva (v. postal abaixo) – é susceptível de inflamar os já excessivamente inflamados, como quem apaga o fogo com gasolina.

Sobre a onda (é dizer: sobre o ambiente assim criado) cavalgam, de entre outros do costume, o PP, que sobre putativas insuficiências do regime legal da prisão preventiva (diz que não se aplica à violência doméstica…) pretende responder ao hirsuto problema do aumento da criminalidade com a recorrentemente oca solução do aumento das penas. Não pugna, por exemplo, por punições mais rápidas e mais certas (isto, mais do que leis, exige sobretudo competência no sentido de mérito e mais atenção, muito mais atenção, às prioridades político-criminais definidas por quem de direito, sobretudo em matéria de diversão processual e resolução alternativa de litígios; só assim é possível divertir meios para aquilo que é realmente grave), que já Beccaria, no século XVIII, preconizava como das poucas soluções efectivamente preventivas, em termos criminais. Não. O PP quer penas mais elevadas. E não só penas mais elevadas: os condenados devem cumprir a pena até ao fim, sem liberdade condicional, que estes são tempos de cortar nos privilégios. Para quê? A Sr.ª deputada e o Sr. Presidente não se dignaram a explicar o ponto aos ignaros.

Mas eu julgo saber. Do que se trata, na verdade, é de uma questão de fundo, apesar de a solução proposta vir mais ou menos travestida de boas intenções. Apesar do “lapso” da Sr.ª deputada no que respeita à consideração da actual figura básica da violência doméstica no âmbito do conceito criminológico de pequena criminalidade, a iconográfica referência àquele crime, por banda da mesma não é, obviamente inócua. Foi, pois, um discurso que pretendeu piscar um olho à hiper-sensível esquerda das causas (a violência doméstica) e o outro à direita mais pura e dura (o aumento das penas). Portanto, um discurso que poderia ser bem da co-autoria do Noddy e do Sr. George W. Bush. Mas, dizia eu, do que se trata nas posições do CDS-PP é de atirar pela janela fora um moribundo, mas ainda assim válido, ideal ressocializador e fazer entrar pela porta grande uma narrativa inocuizadora. Ou dito de modo mais claro: pretende substituir uma ideia (e sobretudo uma prática) de inclusão por uma ideia (e uma prática) de exclusão (e quem é o mexilhão no meio disso tudo já todos sabemos). A pretensão de que as penas para os crimes graves devem integralmente cumpridas, sem mais (isto é, mesmo que desnecessárias do ponto de vista ressocializador), é reveladora do que acabo de dizer. Von Liszt mais do que ressuscitou pela boca do sábio presidente do CDS-PP, pois ao menos o ilustríssimo penalista do século XIX reservava a pena inocuizadora para os então considerados como incorrigíveis, isto é, os delinquentes habituais que se mostrassem refractários ao tratamento reabilitador. O presidente do CDS-PP perdeu, agora sim, uma boa oportunidade para manter o silêncio.







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