28 setembro 2008

 

A banalidade da corrupção

A história das casas da Câmara de Lisboa Lisboa, topicamente contada pelos jornais do fim de semana é, no mínimo, fantástica.
Os números aparentemente envolvidos, o período de tempo em que ocorreram os factos, a «tipologia» dos beneficiados e sobretudo as «justificações» referidas por alguns falam por si.
A banalidade da corrupção.

27 setembro 2008

 

Teixeira Gomes e a pedofilia

Há uma coisa muito engraçada de que só há pouco tempo me dei conta e que estou para escrever há pelo menos duas semanas. Fui passar umas curtas férias àquela zona do Algarve que o escritor Teixeira Gomes muito gostava de equiparar «à paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam» - a que vai da Ponta da Piedade à Ponta do Altar e que, no tempo dele, estava apenas adulterada por algumas fábricas de conservas de peixe e, sobre as rochas, «por essa linha de chalés que desonra e conspurca a natureza…». Oh, se ele a visse agora! Pois levei comigo um livro do escritor que me acompanha infalivelmente sempre que vou para essas bandas – Agosto Azul. Reli para aí pela décima vez quase todas as narrativas que o compõem, muitas delas escritas em forma epistolar (cartas dirigidas ao seu amigo, o poeta João de Barros).
Quando voltei, falei com um meu amigo jornalista acerca do escritor algarvio, injustamente pouco lido. Ele atalhou-me quase de imediato: «Deixei de o ler, desde que soube que ele era pedófilo». Fiquei tão embatucado, que só consegui responder: «Nesse tempo, a pedofilia era quase uma elegância literária». Um exagero, evidentemente. Mas fiquei com o ferrete, só por si um sinal dos tempos, a remoer no cérebro. E não é que acordei no dia seguinte com uma das narrativas da colectânea a fazer-me pisca-pisca? Trata-se da narrativa que tem por título, justamente, «Sobre a paisagem grega», uma narrativa de que eu particularmente gosto e sobre a qual anotei, num apontamento rabiscado, «que é onde está o conto divinal da sua 1.ª relação amorosa com uma mulher madura». Aí o escritor conta a sua iniciação sexual com uma jovem mulher casada, que o atraíra a sua casa e o convidara a dormir uma sesta com ela. Narra o escritor com uma requintada sobriedade : «Estendida a um canto da casa, que estava muito fresca, e tinha o chão caiado, havia uma grande esteira de empreita, com o travesseiro da cama de casados. Tudo rescendia a manjerona: a casa, o travesseiro, o seio de Senhorinha… Uma hora depois, quando de lá saí, todo o ar me parecia pouco para encher o peito, e sentia bater-lhe dentro um novo coração, um coração de herói… E no entanto o vencido fora eu.».
Pela primeira vez – palavra de honra! – me dei conta do crime que aquela tal Senhorinha teria cometido, se fosse hoje. Nada mais, nada menos do que um abuso sexual de crianças, punido com uma pena de 3 a 10 anos de prisão. É que o escritor tinha apenas 12 anos.
Telefonei ao meu amigo: «Sabes uma coisa? Afinal, Teixeira Gomes não era pedófilo; foi é vítima de pedofilia».

24 setembro 2008

 

Casamentos homossexuais

Um argumento esgrimido contra a aprovação do projecto que prevê os casamentos homossexuais é o de que não se trata de "questão prioritária". Trata-se obviamente de um argumento apresentado por heterossexuais, porque estes não precisam daquele projecto para nada.
Mas para os homossexuais a questão será eventualmente prioritária, não é? É que, enquanto vigorar a lei actual, eles não podem casar! E casar pode ser para eles importante, tanto quanto o é para os heterossexuais.
Portanto, a questão não se põe em termos de prioridade.
Aliás, é sempre prioritário pôr termo às desigualdades e discriminações que possam existir!
Surge então um segundo argumento: o casamento é só para heterossexuais. Para os homossexuais poderá, quando muito, arranjar-se um estatuto que proteja os interesses das pessoas que vivem em comum.
Cai então a máscara: a questão não está na falta de prioridade, mas sim no preconceito e no dogmatismo tradicionalista - o casamento só pode ser entre pessoas de sexos diferentes, porque esse é que funda uma família, porque esse é que pode dar lugar à procriação. Sim, é aí que está o nó da questão: na procriação como "fundamento" e razão de ser do casamento. Sem comentários.
Outro aspecto interessante é que, numa questão dita "civilizacional" ou "ética" ou do "foro íntimo", os dois partidos "centrais" estejam empenhados em impor a disciplina de voto. Diga-se, aliás, que essa disciplina, pondo de parte alguns axpectos essenciais ligados ao programa do partido, nunca deveria existir, porque o deputado presume-se adulto e responsável. Mas, num tema como este, é óbvio que a liberdade de voto deveria ser total.
Mas não será assim. O PS invoca aliás um argumento interessante: esta questão não está na sua agenda política!... É então uma questão de falta de agenda? Ou é uma questão de falta de coragem? Ou uma questão de opção ideológica?
Bem, os homossexuais que esperem. É que a questão não é mesmo prioritária para quem tem o poder de decidir.

20 setembro 2008

 

A geografia do crime

A propósito do “post” de Maia Costa sobre o espectáculo da criminalidade, lembrei-me de uma coisa: com as acções policiais levadas a cabo neste Verão, com grande aparato de meios humanos e tecnológicos, onde não faltaram helicópteros a sobrevoar as zonas onde decorreram as operações, ficamos a conhecer a geografia do crime a que urge dar um combate sem tréguas. Essa geografia já era por demais conhecida e não sofreu grandes alterações ao longo dos séculos: bairros periféricos e degradados, promíscuos, onde campeia a miséria moral, social, familiar e cultural. Foi aí que sempre morou o crime, no seu sentido mais esplendorosamente negro. É portanto aí que se impõe a mobilização maciça da força repressiva do Estado. E será porventura em relação aos protagonistas criminosos dessas áreas ditas “problemáticas” que se impõe que os tribunais usem a dura lex sed lex sem contemplações, ou seja, que os juízes se não mostrem “brandos” na aplicação da lei, desde logo na fixação da prisão preventiva, que deve, evidentemente, ser aplicada só em casos extremos.
Quanto aos demais, aqueles casos de crimes (ou melhor: suspeitas de crimes) que, podendo ser graves, envolvem pessoas de certo “status”, isto é, bem “inseridas socialmente”, com advogados sempre atentos aos mais ínfimos pormenores da lei, aí, mais atenção, porque o feitiço pode voltar-se contra o feiticeiro. Aí, há sempre a ameaça sobre o aplicador da lei de uma acção de indemnização que venha repor no seu lugar a dignidade ultrajada por uma decisão que não acautelou devidamente os pressupostos excepcionalíssimos da excepcionalíssima prisão preventiva, quando não a evidente inocência dessas pessoas. Neste momento, aproveitando os sucessos recentes, que não discuto quanto ao seu acerto ou desacerto, já há uma série de candidatos declarados à indemnização. E a honorabilidade e as carreiras dessas pessoas não são coisa para brincar. Cotam-se a preços muito elevados.

19 setembro 2008

 

Divórcio sem culpa

O novo regime do divórcio poderá ter alguns problemas de pormenor, mas o princípio básico em que assenta (a eliminação da culpa como requisito do divórcio litigioso) constitui uma ruptura ideológica no ordenamento jurídico familiar equiparável à eliminação da procriação como fim do casamento (assim era até 1977, lembram-se?) e com maior alcance prático. Porque é uma certa concepção de "casamento" e "família" que a inovação põe em crise.
Por isso a direita conservadora, agarrada à conceção tradicional (mesmo quando não a pratica, acha que é boa para os outros...) reagiu. E a direita liberal, que no fundo está de acordo, porque a evolução dos costumes tem posto em cheque muitos dos dogmas tradicionalistas, mas não pode confessá-lo, teve que "desvalorizar" a iniciativa.
Estou em crer que o novo regime, além de "actualizar" e "secularizar" o regime jurídico da família, porá termo à chantagem como "arma" eficaz para obtenção de vantagens indevidas no momento da ruptura do casamento. É, além do mais, uma lei justa e até pragmática.
É também uma prend(inh)a para a esquerda. A única que o PS tem para lhe distribuir, a um ano de eleições. Porque a direita tem levado sempre melhores favores, ainda agora com o Código do Trabalho...

 

O combate à criminalidade como espectáculo educativo

Ontem, no Porto, uma matilha de malfeitores detidos foram apresentados no TIC. Estavam lá à espera as televisões (como terão sabido elas a que horas os presos chegavam?).Foram imagens fortes: gritaria geral, espingardas em riste, polícias empurrando os detidos algemados para dentro do tribunal, um verdadeiro Far West.
A eficácia policial fica demonstrada à saciedade (e à sociedade). Os inseguros podem sentir-se mais seguros e agradecer ao Governo as medidas tomadas.
E se algum detido for libertado a culpa é do juiz, que bem sabe que está ali não para complicar, mas sim para validar o trabalho da polícia. É o Estado de Direito reinterpretado em tempos de crise.

18 setembro 2008

 

Criticar, descredibilizar, instrumentalizar

Vem a propósito o discurso do presidente da República no 175.º aniversário da criação do Supremo Tribunal de Justiça, o qual, na sua essência, foi interpretado como um aviso ao poder executivo pelos ataques que tem dirigido ao poder judicial. Também o do Prof. António Hespanha, que muito argutamente soube transpor de forma crítica a leitura do passado histórico para os tempos presentes. E antes dele, o do Prof. Correia Pinto, numa exposição infelizmente pouco concorrida também no STJ, em que pôs a nu o que verdadeiramente se acoberta debaixo de certos ataques a que temos assistido. Será que chegou a hora de se pôr cobro a essa desatinada campanha de descrédito (isto é, de deslegitimação) do poder judicial por parte do poder executivo, o qual não tem olhado a meios, inclusive socorrendo-se de manipulação de certos factos (veja-se o recente caso da «brandura na aplicação da prisão preventiva», a propósito da onda de violência neste Verão) para atingir fins que parecem nebulosos por porem em causa o próprio Estado de direito democrático?
Uma coisa é o ataque às corporações, por criarem resistências a mudanças que urge implementar; outra é descredibilizar as instituições a pretexto desse ataque. Uma coisa é criar condições para corrigir disfuncionalidades do “sistema”, que terão causas objectivas, históricas, estruturais; outra, atacar a honorabilidade profissional de toda uma corporação (não tenhamos medo da palavra), como se fosse nas pessoas concretas que a compõem que residisse a raiz dessa disfuncionalidade. Uma coisa é criticar os erros, a indolência, a burocracia, a negligência, as faltas de serviço, a violação dos deveres deontológicos, para os quais há (ou é suposto haver) meios próprios de reacção, que têm a ver com o sancionamento de comportamentos, e outra servir-se disso para pôr toda uma corporação na lama. Uma coisa, em suma, é criticar (o que implica sempre critérios judicativos justos) e outra é “malhar” para instrumentalizar e condicionar. Infelizmente, o poder (neste caso o poder político) tem sempre quem, por receio, tibieza ou desejo de agradar (numa palavra, por falta de independência) esteja pronto a servir os seus propósitos, mais ou menos explícitos, mais ou menos camuflados.

17 setembro 2008

 

A responsabilidade por erro judiciário

O recente sucesso de dois peticionantes de indemnizações contra o Estado por erro judiciário pode provocar uma onda gigantesca de pedidos idênticos: já outros "humilhados e ofendidos" anunciaram a intenção de processar o Estado e muitos outros o procurarão fazer, se a coisa resultar.
É obvio que a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário é uma garantia fundamental para os cidadãos e não põe em causa a irresponsabilidade estatutária dos juízes.
Ou melhor, não põe em causa a irresponsabilidade e a independência dos juízes, se os seus pressupostos (existência de "erro grosseiro") forem devidamente interpretados. É certo que o conceito de "erro grosseiro" é indeterminado e abre uma larga margem à interpretação. Mas uma coisa perece-me certa: não basta a revogação da decisão em causa por um tribunal superior para que fique "provado" o erro grosseiro. E mais: também não basta que a decisão revogatória considere que tal erro se verificou. Esse eventual juízo não vincula obviamente o tribunal da causa em que se discute a existência de responsabilidade do Estado, ele constituirá apenas um dos elementos da prova, a par de outros que forem apresentados, todos eles apreciados segundo o princípio da livre convicção do julgador.
Uma aplicação não rigorosa dos pressupostos da responsabilidade por erro judiciário pode ter consequências tremendas na actividade judiciária, sobretudo a nível da independência dos juízes.

 

As palavras do PR

Sábias e justas foram as palavras do PR ontem no STJ, ao dizer que qualquer ofensa à dignidade e ao prestígio do poder judicial constitui uma ameaça grave para a democracia.
Porque uma coisa é criticar, outra ofender e deslegitimar, e é esta atitude que tem predominado nas "vozes críticas" que ultimamente se têm ouvido.
Claro que os destinatários óbvios daquela mensagem (que não são poucos) vão fazer orelhas moucas, ou talvez pensar que se tratava de mera cortesia, de salamaleque de ocasião.
Talvez se imponha por isso que o PR, noutros cenários e noutras ocasiões, volte ao tema, com a sua autoridade de Chefe de Estado.
Porque realmente é a democracia que está em crise, quando continuamente se atenta contra a legitimidade e autoridade do poder judicial.

15 setembro 2008

 

Ainda a prisão preventiva

Chocou muito a opinião pública, ao que parece, o facto de o autor da tentativa de homicídio na esquadra da PSP de Portimão ter saído em liberdade. Clamou-se, mais uma vez, contra a irresponsabilidade dos juízes.
Mas depois veio a saber-se que a situação era peculiar, que havia "antecedentes" entre autor e vítima, que o ofendido também teria algumas culpas no cartório.
Poderá ser assim ou não, isso não importa.
O que interessa é que (só) o juiz que tomou a decisão de não aplicar a prisão preventiva tinha conhecimento de todos os elementos de facto que permitiam tomar uma decisão, e não a imprensa ou os "populares".
E foi com esse conhecimento global que ele decidiu.
E não para satisfazer as "expectativas comunitárias" de repressão da criminalidade, que actualmente são muito altas, como se sabe.
O juiz decide com base nos factos e no direito, e segundo a sua consciência jurídica.
Quando o juiz decidir de acordo com as expectativas dos energúmenos que se juntam às portas dos tribunais, ou mesmo dos repórteres de serviço, então sim a justiça está perdida!
A minha homenagem ao juiz de Portimão, que honrou a justiça, em circunstâncias em que o mais fácil era seguir na onda abjecta do populismo repressivo.

 

Orçamento suplementar

Se vier a firmar-se a tão aplaudida jurisprudência das Varas Cíveis de Lisboa no caso Pedroso, agora continuada pela Relação do Porto no caso Pinto da Costa, quanto à indemnização por prisão ilegal, julgo que será melhor o ministro das Finanças ir preparando um orçamento suplementar, para reforço das verbas do Ministério da Justiça.

 

Saudades da prisão preventiva

De repente o país acordou cheio de saudades dos tempos em que as cadeias abarrotavam de presos preventivos. Que bom que era! Quase não havia criminalidade! Os maus ficavam presos logo que eram apanhados e já só saíam depois de cumprida a pena que, nesses bons tempos, durava sempre dezenas de anos, arredando da sociedade os malfeitores.
É esta a "narrativa" que por aí passa.
Mas o pior é que alguns magistrados com responsabilidades sindicais começam a "recepcionar" essa mesma versão. A culpa, dizem eles, é da reforma de 2007, e da lei de política criminal, porque "dificultam" a aplicação da prisão preventiva.
Não estou minimamente de acordo. O diploma que dificulta extremamente a prisão preventiva é a Constituição, que, no seu art. 28º, estabelece que ela tem carácter excepcional (como todos os alunos de direito sabem).
O que está "mal", pois, é a Constituição, e não a lei ordinária.
E se acham mesmo que a Constituição está mal, então juntem-se ao Portas (Paulo), ao "Correio da Manhã", "24 Horas", TVI, SIC, etc. etc. e promovam uma campanha nacional pela revisão da Constituição já!
Mas enquanto a Constituição estiver como está, ela é para ser levada a sério.

 

Nuvem de Palavras

Este é o conjunto de palavras que se destacam na primeira página do Sine Die.


 

Palin e Clinton falam à Nação


10 setembro 2008

 

A perversão da justiça

Penso que, em relação ao processo “Casa Pia”, um dos males terá sido a sobreposição da “cena mediática” à “cena da justiça”, sendo esse um dos perigos que eu tenho insistentemente denunciado em múltiplos trabalhos que tenho dedicado ao tema (e peço desculpa por esta aparente falta de modéstia). Essa sobreposição aconteceu pelo lado da comunicação social, que encara isso de forma natural, mas também da parte de “actores” judiciários (magistrados, advogados, etc., uns incautamente e outros não) e de muita gente interessada em fazer do palco mediático o principal palco de intervenção. Se uns agiam conscientemente e até manipuladoramente, outros foram levados na onda e encontraram aí, de forma ilusória, a sua oportunidade para se transformarem em protagonistas. É o pior que pode haver. A mediatização, neste sentido invasivo e substitutivo da “cena judiciária”, é sempre uma perversão da justiça.

06 setembro 2008

 

Duas ou três coisas fundamentais

Em alguns blogs, a propósito da indemnização arbitrada ao Dr. Paulo Pedroso com fundamento em erro grosseiro de interpretação dos pressupostos da prisão preventiva, tem-se escrito coisas verdadeiramente alucinantes. Assim, alguns culpam a justiça de forma geral, sem perceberem que foi a mesma justiça que considerou (não discuto se bem se mal) que o juiz que ditou a prisão preventiva do Dr. Paulo Pedroso errou de forma grosseira na avaliação dos pressupostos da referida medida de coacção.
Por outro lado, têm crucificado o dito juiz de instrução, reclamando a sua expulsão imediata e afirmando que, se fosse noutra profissão menos corporativa, ele já estava na rua. Com isso ignoram duas ou três coisas fundamentais:
1.ª - a decisão não transitou em julgado;
2.ª - mesmo que tivesse transitado em julgado, o juiz visado não foi tido nem achado na acção, isto é, a decisão é-lhe alheia, porque ele não foi parte;
3.ª - o juiz visado não se pôde defender de qualquer acusação, pelo que as pessoas que escrevem da maneira sobredita e que têm profissões menos corporativas, se calhar esquecem que, mesmo nas profissões delas, não se pode pôr ninguém na rua sem ter corrido um processo e dar-se-lhe a oportunidade de audição e defesa.

PS – Declaro que não conheço de parte nenhuma o juiz visado, a não ser de o ver na televisão fugindo de jornalistas que sistematicamente seguiam no seu rasto. É no entanto evidente que isto que eu deixo escrito se deve ao facto de eu pertencer a uma profissão muito corporativa.

 

Os poderes do ministro

E por falar na indemnização ao Dr. Paulo Pedroso:
A comunicação social, mais precisamente a SIC, pois foi nessa estação que ouvi a informação, transmitiu uma declaração (creio que era uma declaração) do ministro da Justiça que dizia mais ou menos o seguinte: este caso é um daqueles em que o ministro da Justiça pode dar instruções ao Ministério Público para recorrer ou deixar de recorrer, pois se trata de matéria cível, ou seja, de matéria em que prepondera um interesse particular do Estado, sendo este representado pelo Ministério Público, aqui sujeito a instruções do titular do interesse. Ora, o ministro da Justiça veio declarar que, apesar desse poder, não o exerceria neste caso, deixando a faculdade de recorrer ao critério do próprio Ministério Público.
Já tive a meu cargo, como superior hierárquico do Ministério Público, a coordenação de todos os Juízos e Varas Cíveis do Porto. A regra, nestes casos, era o ministério respectivo dar ordens no sentido de o Ministério Público recorrer das decisões que condenavam o Estado, mesmo até em situações em que havia nulas possibilidades de obtenção de ganho no tribunal superior. Tal aconteceu não só com governos do PSD, mas também do PS.
Neste caso, pareceria mal ao ministro da Justiça que desse ordens para o Ministério Público não recorrer, e isto por óbvias razões. Mas também dar ordens para recorrer colocaria o ministro em situação difícil ou pelo menos dificilmente compreensível, também por razões que facilmente se imaginam. De maneira que a única possibilidade que lhe restava era tomar a atitude que tomou.

 

Erros grosseiros

É lamentável que um jornal como o “Público”, a propósito da decisão que condenou o Estado Português a pagar uma indemnização ao Dr. Paulo Pedroso por “erro grosseiro” de interpretação dos pressupostos legais de que depende a aplicação da prisão preventiva e que levou o juiz de instrução a decretar essa medida coactiva tenha, logo na 1.ª pagina e a toda a largura, subtitulado a noticia da seguinte forma: «Sentença da Relação de Lisboa realça “erro grosseiro” que causou sofrimento para “toda a vida”. E, no texto preambular, também exarado na 1.ª página, que antecede o trabalho subscrito por António Arnaldo Mesquita, na página 4, tenha voltado a referir o Tribunal da Relação de Lisboa como o tribunal que proferiu a decisão.
Ora, em primeiro lugar, não foi o Tribunal da Relação de Lisboa que teve intervenção no caso, mas sim o tribunal de 1.ª instância, como aliás se extrai claramente do trabalho de António Arnaldo Mesquita, que fala de «decisão das Varas Cíveis de Lisboa», a qual, segundo o mesmo trabalho, se teria baseado – e aqui, sim, de forma inteiramente inteligível - «no acórdão da Relação de Lisboa que ordenou a libertação de Pedroso». Mais ainda: no mesmo texto de Mesquita, depreende-se que foi uma juíza (portanto, julgando singularmente) que decidiu a acção proposta pelo Dr. Paulo Pedroso.
Em segundo lugar: os tribunais superiores não decidem por sentença, mas, em regra, por acórdão, isto é, por decisão tomada colegialmente.
O mesmo erro volta a ser repetido na última página, na coluna intitulada «Sobe e desce», onde se fala na «importante vitória judicial» obtida pelo Dr. Paulo Pedroso, «ao ver reconhecida pelo Tribunal da Relação a existência de “erros grosseiros” no processo que determinou a sua previsão preventiva”. Aqui, ao referido erro, acresce a calinada previsão preventiva, em vez de prisão preventiva, mas admite-se que tenha sido mero lapso, que não foi corrigido a tempo. Também não se sabe como é que a “sentença” (mais uma vez “sentença” para designar uma pretensa decisão da Relação) «tenha de passar pelo crivo do Supremo Tribunal». Só se for por, pressupostamente, a decisão ter sido proferida pela Relação. É que, em regra, o recurso da decisão de 1.ª instância é para a Relação, a menos que o recurso seja restringido exclusivamente a matéria de direito, sem pôr em causa a decisão da matéria de facto.
Tudo isto que aqui refiro é bizantinice de especialista? Não. É exigência de informação correcta. Também há erros inaceitáveis na informação que nos é fornecida. De uma maneira geral, é nos títulos, nos comentários pretensamente a latere, que são veiculadas as maiores barbarides.

04 setembro 2008

 

Franz Von Liszt e o Presidente do CDS-PP

Já se sabe que a evolução da criminalidade violenta no primeiro semestre deste ano superou, em cerca de 10%, a registada para o mesmo período do ano passado. Já se sabe, também, que a taxa verificada este ano coloca-o de par, nesse particular, com anos como 2006. Também são relativamente conhecidas as mediações significativas que permitem que uma percepção social de insegurança de amplo espectro – derivada, de entre o mais, de mutações do sistema económico (recuo do Estado de Bem-Estar, taxas estruturais de desemprego, etc.), da degradação do meio ambiente, dos grandes riscos sanitários, da crise dos referentes identitários e de socialização que eram próprios da modernidade (crise da ideia de Nação, classe social, família e papéis relativos dos que a integram, por ex.) – se projecte sobre crescentes e concretas demandas securitárias e punitivas. Essas demandas assentam, assim, naquele o húmus próprio da tão propalada Sociedade do Risco em que o medo se assume como a tonalidade emotiva dominante e, um pouco por toda a parte, base de muita da actual irracionalidade político-criminal.

Como se sublinha numa recomendável e muito recente obra sobre o tema (Brandariz García, Política Criminal de la Exclusión, 2007), aquelas mediações significativas estabelecem-se essencialmente através da comunicação social e da retórica dos responsáveis pela segurança. Tal como o reducionismo discursivo (a recorrente dicotomia bons/maus) e a mitologia hiper-garantista ou da excessiva benevolência dos juízes (“a polícia prende eles, os juízes, soltam”) que são, neste particular, marca de água da narrativa dos media (ultimamente, entre nós, em crise de mania securitária após uma inexplicável e relativa fase depressiva em 2006), também o descuido retórico (para dizer o menos) por banda dos que têm autoridade institucional em matéria de segurança – por exemplo, imputando aos juizes uma conspiração no sentido de denegação da aplicação da prisão preventiva (v. postal abaixo) – é susceptível de inflamar os já excessivamente inflamados, como quem apaga o fogo com gasolina.

Sobre a onda (é dizer: sobre o ambiente assim criado) cavalgam, de entre outros do costume, o PP, que sobre putativas insuficiências do regime legal da prisão preventiva (diz que não se aplica à violência doméstica…) pretende responder ao hirsuto problema do aumento da criminalidade com a recorrentemente oca solução do aumento das penas. Não pugna, por exemplo, por punições mais rápidas e mais certas (isto, mais do que leis, exige sobretudo competência no sentido de mérito e mais atenção, muito mais atenção, às prioridades político-criminais definidas por quem de direito, sobretudo em matéria de diversão processual e resolução alternativa de litígios; só assim é possível divertir meios para aquilo que é realmente grave), que já Beccaria, no século XVIII, preconizava como das poucas soluções efectivamente preventivas, em termos criminais. Não. O PP quer penas mais elevadas. E não só penas mais elevadas: os condenados devem cumprir a pena até ao fim, sem liberdade condicional, que estes são tempos de cortar nos privilégios. Para quê? A Sr.ª deputada e o Sr. Presidente não se dignaram a explicar o ponto aos ignaros.

Mas eu julgo saber. Do que se trata, na verdade, é de uma questão de fundo, apesar de a solução proposta vir mais ou menos travestida de boas intenções. Apesar do “lapso” da Sr.ª deputada no que respeita à consideração da actual figura básica da violência doméstica no âmbito do conceito criminológico de pequena criminalidade, a iconográfica referência àquele crime, por banda da mesma não é, obviamente inócua. Foi, pois, um discurso que pretendeu piscar um olho à hiper-sensível esquerda das causas (a violência doméstica) e o outro à direita mais pura e dura (o aumento das penas). Portanto, um discurso que poderia ser bem da co-autoria do Noddy e do Sr. George W. Bush. Mas, dizia eu, do que se trata nas posições do CDS-PP é de atirar pela janela fora um moribundo, mas ainda assim válido, ideal ressocializador e fazer entrar pela porta grande uma narrativa inocuizadora. Ou dito de modo mais claro: pretende substituir uma ideia (e sobretudo uma prática) de inclusão por uma ideia (e uma prática) de exclusão (e quem é o mexilhão no meio disso tudo já todos sabemos). A pretensão de que as penas para os crimes graves devem integralmente cumpridas, sem mais (isto é, mesmo que desnecessárias do ponto de vista ressocializador), é reveladora do que acabo de dizer. Von Liszt mais do que ressuscitou pela boca do sábio presidente do CDS-PP, pois ao menos o ilustríssimo penalista do século XIX reservava a pena inocuizadora para os então considerados como incorrigíveis, isto é, os delinquentes habituais que se mostrassem refractários ao tratamento reabilitador. O presidente do CDS-PP perdeu, agora sim, uma boa oportunidade para manter o silêncio.



03 setembro 2008

 

Vingança por vingança

A propósito da suposta “brandura dos juízes” na questão da aplicação da prisão preventiva com que o Governo, nesta vaga de criminalidade violenta, parece ter ficado “irritado”, assacando-a a um espírito de vindicta pela retirada de “privilégios” aos juízes, escreveu ontem Miguel Gaspar no “Público”, do qual é jornalista e um dos mais argutos comentadores: «(…) despachar para cima dos juízes uma responsabilidade que decorre da lei (…) é um bom exemplo de pequenez política em grande escala. Há um problema? Arranje-se um bode expiatório.»
Miguel Gaspar tirou-me as palavras da boca. Com efeito, ao ler, ainda em férias, a notícia não desmentida oficialmente, no “Expresso” de sábado passado, com título de grande relevo na 1.ª página, da tal “irritação” do governo e da “espécie de conspiração dos juízes” para, concertadamente, demonstrarem «a ineficácia das leis penais», foi mais ou menos esse pensamento que me ocorreu. Se é demagógico afirmar ou mesmo sugerir que o tal aumento de criminalidade violenta se deve à alteração dos Códigos Penal e de Processo Penal, porque não decorreu tempo suficiente para se poder fazer essa avaliação, nem ela se baseia em qualquer estudo minimamente fiável, igualmente demagógica e mais gravosa, por vir de quem vem, se mostra essa patente ligação da “brandura” dos juízes ao aumento da referida criminalidade, quando a aplicação das novas leis não tem tanto tempo que permita tirar conclusões desse jaez, aliás sempre arriscadas, e quando ela se fundamenta em um ou dois casos mais duvidosos.
O caso reveste características insidiosas quando, por sobre isso, se imputa a suposta “brandura dos juízes” a vingança destes por causa da politica do governo em relação a eles. Aqui, revela-se a intencionalidade ínvia que preside a essas insinuações: continuar a desacreditar globalmente, com objectivos políticos, uma classe profissional de uma forma persistente e inédita, com acentos populistas perigosos, como esse da «desautorização pelos juízes das entidades policiais” e com defraudação das verdadeiras razões de fundo, pois o que se pretendeu com as alterações legais foi mesmo evitar ao máximo a aplicação da prisão preventiva. Ou essas alterações foram só para inglês ver?
Quem se vinga de quem no pútrido “reino da Dinamarca”?

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