03 fevereiro 2008

 

Carta a um amigo do coração

Ou de como fugir a tempo dos caminhos errados do vício e entrar nos rectos caminhos da Democracia Sanitária – uma forma avançada de Democracia, baseada na Ciência, na Libertação da Dependência e no Bem-Estar Geral.

Meu prezado Amigo:
Vejo que está muito revoltado com a actual lei do tabaco. Leva a sua indignação ao ponto de considerar que a lei é a mais sórdida expressão moderna do Estado-Leviatã. Mais ainda: diz que não pode ver à frente a figura do respeitável Director-Geral da GGS e que esta sigla lhe faz lembrar coisas muito sinistras de antanho, que já se pensavam enterradas há muito. Aliás, afirma-se muito descontente e desanimado com a situação, onde a democracia parece cada vez mais formal e inatingível, imperando a “loucura sanitária”, “a prepotência que não conhece limites” e “a prática de actos ignóbeis”, como esse, que as muitas críticas conseguiram fazer gorar, de fraccionar o aumento de reformados e pensionistas, o que daria escassos cêntimos por mês a cada pobre contemplado. Para resumir o seu pensamento, diz que o que está em voga é uma espécie de “despotismo iluminado”, característico do Leviatã.
Pois o que se me oferece dizer ao meu amigo é que a sua acrimónia e a maneira pessimista como vê a evolução do nosso estado de coisas é um exemplo típico das nefastas consequências provocadas pelo tabaco. É que, de entre essas numerosas consequências, uma das fundamentais é a dependência que proporciona, de tal forma que a sua privação traz distorções assinaláveis na maneira como se vê a vida, a sociedade, a política, etc. Pois o meu amigo, vendo-se obrigado a restringir drasticamente o uso do tabaco, por força da lei que considera tão ignominiosa, vê tudo de uma forma assaz anómala. Essa é uma característica dos que passaram a vida a depender de tóxico tão pernicioso. Para além dos comprovados males físicos que o uso do tabaco acarreta (cancro do pulmão, cancro do estômago, cancro da bexiga, cancro do esófago, cancro de muitas mais coisas, e ainda – repare bem: perda da virilidade (ó meu amigo, pois claro: perda da vi-ri-li-da-de. Precate-se!), perda da memória, obtusidade intelectual, o tabaco também traz dependências perigosas que fazem com que, privados de as satisfazerem, os dependentes se voltem agressivamente contra quem, olhando para o interesse público, quer finalmente estabelecer o Reino da Saúde, do qual há-de emergir um “homem novo”, esse tão decantado “homem novo”, saudável, vivendo em harmonia consigo e com todos os homens que aspiram a um ideal salutar.
Estamos a atravessar uma nova era, meu prezado amigo, a era em que todos podem e devem ser saudáveis. Para isso, há que levar avante políticas que imponham as condições necessárias ao alcançamento desse Ideal, seja pela purificação dos corpos, seja pela purificação das mentes. “Mens sana in corpore sano”. Esta velha aspiração romana (quero dizer, humana), tornou-se uma realidade tangível. Purificados os corpos e os espíritos, os homens passarão a encarar a realidade com outros olhos, de uma forma muito mais saudável em todos os aspectos da vida, desde o plano individual ao social.
Para se atingir esse objectivo, há que desenvolver uma luta tenaz e sem contemplações. Contra os fumadores, para já. Estes não têm nenhuns direitos, contra o que o meu prezado amigo sustenta. É que o fumo deles prejudica os cidadãos não fumadores, que são a maioria, e muito particularmente os trabalhadores, que trabalhando honestamente para ganhar a vida e produzir riqueza para a Nação, correm o risco de apanhar com fumos deletérios para a sua saúde, debilitando-os para o trabalho e, logo, para a produção de riqueza. Veja a extrema preocupação do nosso Director-Geral com a saúde deles. Ele preocupa-se sinceramente (como nenhum benemérito antes dele) com a saúde dos trabalhadores e, por isso, quer protegê-los, muito legitimamente, de fumos perniciosos como o do seu cigarro.
Mas também os próprios fumadores têm que ser protegidos da sua própria miséria. Da miséria da sua dependência patológica. Veja a triste figura que eles fazem a chupar o cigarro sofregamente nos passeios, à porta dos estabelecimentos, na rua, nos becos, em escadarias esconsas, sofrendo o frio e a chuva, constipando-se, contraindo gripes. Outro dia, vi um grupo desses pobres desgraçados a fumar atrás dum grade de arame que tapava uma rua em reparação, e não imagina a pena que me deu. Pena por ver ao que eles se sujeitam, e pena por ver a miséria moral para que os arrasta o vício. Uma tal imagem (não imagina quanto lamentei não ter o talento de um Rembrandt para pintar a cena e assim legar aos vindouros esse tão deprimente quadro da nossa vida actual), uma tal imagem é bem o símbolo em que se transformaram os fumadores: gente tolerada que alimenta o seu vício atrás de grades. É como se fossem prisioneiros encurralados pela grande força vital que atravessa a nossa sociedade e de que a DGS, que o meu amigo tanto detesta, constitui a vanguarda vigilante da Grande Limpeza Higiétnica.
Na verdade, este é só um passo para o total extermínio dos fumadores – a solução final que está programada. É que o que se pretende a longo prazo é acabar totalmente com a raça dos fumadores. Erradicar-lhes o vício, se necessário for pelo tratamento adequado numa clínica, num hospital psiquiátrico ou fazendo-os tomar pílulas que os levem a exorcizar o vício para sempre.
Não sei se alguma vez lhe contaram a história de “Voando Por Sobre Um Ninho de Cucos”. Resumidamente, trata-se de uma história que apresenta o modelo de uma sociedade perfeita, em que os indivíduos que dissentem dos cânones modelares dessa sociedade, permitindo a todos viverem em boa harmonia, são enviados para hospitais psiquiátricos, a fim de se curarem. Ao cabo de uns tempos de internamento, esses indivíduos regressam a casa curados e já aptos a integrarem-se na vida social, sem problemas. Ou então são mesmo loucos e já não têm remédio; não podem viver com os sãos. (Palpita-me que esta história ainda há-de ser contada num futuro radioso por um artista que ainda há-de nascer para uma arte que ainda não existe e que aglutinará várias artes, sobretudo visuais).
O meu prezado amigo não acha estupenda a ideia contida nesta história? Não é capaz de representar o progresso humano que há nela? É que o desvio à regra não é encarado como transgressão punível, mas como doença. Eis a profunda humanidade com que são olhados os indivíduos inadaptados, viciosos ou causadores de danos ao bem-estar da sociedade em geral, seja em que esfera for e principalmente na da saúde. Desta depende, com efeito, o bom humor, a boa disposição, a alegria de viver, o gosto pelo trabalho, o desejo de harmonia e, logo, de boa convivência, a longevidade dos indivíduos que formam a colectividade e, logo, o aumento da vida activa, com o consequente aumento dos problemas laborais e de segurança social (esse quebra-cabeças do futuro) a estimularem a imaginação e capacidade inventiva dos nossos políticos, dos nossos economistas, dos nossos sociólogos e até dos nossos artistas. Imagine o que seria uma ficção em que a Morte, estabelecendo um pacto com a Saúde, suspendesse ou retardasse a acção negra da sua gadanha e os humanos começassem a viver indefinidamente, a braços com problemas de emprego e da referida segurança social, para além de outros inimagináveis problemas. Como é que um artista do futuro conceberia um tal cenário? Pois é todo esse entrosamento de questões e de estados de espírito e de estímulos inventivos que fornece a seiva alimentadora de uma sociedade em progresso sanitário Fui claro?..
Voltando aos fumadores: como disse lapidarmente o nosso Director-Geral, “não fumar é a regra e fumar, a excepção”. Daí que, sendo a excepção um elemento perturbador, o mais natural é querer eliminá-la. Um primeiro passo reside em acentuar a excepção, atirando os fumadores para a rua e tornando o seu vício mais visível, mais notável e mais propício à censura da regra, corporizada nos milhares de cidadãos que interiorizaram a natureza do Mal. Este é também um alto princípio democrático.
Um segundo passo é considerar os fumadores como portadores de uma patologia curável e dar-lhes a possibilidade de regeneração, através da cura. Este segundo passo prepara já o terceiro, que é, como disse, o extermínio dos fumadores. “Extermínio” entenda-se: não se trata de atar os fumadores a uma pedra e lançá-los ao mar, mas de levá-los por métodos científicos ao bom caminho, fazendo desaparecer a causa que os impede de serem cidadãos saudáveis, assim como a de constituírem um perigo para a saúde em geral (daí vem, aliás, o nome de Direcção-Geral de Saúde). O “extermínio” dos fumadores vem a ser então o seu desaparecimento como fumadores “tolerados” (um adjectivo que, como sabe o meu prezado amigo, tem raiz em “tolo”).
Ora, não me diga que este método, baseado em concepções científicas e de depuramento da raça, colide com a Magna Carta dos direitos do cidadão e ainda para mais num Reino que se orgulha do seu pioneirismo em tal matéria. Veja como reagem alguns dos nossos mais ilustres comentadores da referida Magna Carta, nenhum deles assacando pecha à lei que põe os fumadores no olho da rua. E a Democracia Sanitária (um estado avançado de Democracia) não se compadece com quem, podendo regenerar-se, põe em causa a saúde em geral e também a sua própria, porque quem não respeita a sua saúde, também não respeita a dos outros. Não queremos cidadãos doentes, prisioneiros do vício. Lutar contra eles sem contemplações é lutar pelo bem geral. E o bem geral, baseado em dados científicos mais do que comprovados sobe a natureza do Mal, está indiscutivelmente acima das inclinações pessoais. Isso, sim, isso é Democracia. Chame-lhe despotismo iluminado, chame-lhe o que quiser.
Por isso, meu prezado amigo, vá-se preparando para o seu “extermínio”. Ou então regenere-se enquanto é tempo. Quem o avisa seu amigo é.
Seu do coração
Jonathan Swift (1665 – 1745)





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