21 dezembro 2007

 

Algo está podre.


Intriga-me a leviandade com se usa e abusa de certas palavras. É certo que, frequentemente, um tal abuso se mostra inócuo: umas vezes limita-se a servir a bandeira da pura retória inane; noutras, destina-se mais propriamente a ajaezar com enfeites de cultura postiça o que, por rectas contas, não é mais do que revelação de ignorância sobre este ou aquele fenómeno; noutras ainda, como não raro sucede, é sintoma do mais primário relativismo moral.

Em outras espécies, porém, o referido abuso pode esconder realidades bem mais preocupantes e substanciais. Penso, claro está, no pomposo anúncio de que os membros do assim chamado Gang da Ribeira estariam incursos no crime de terrorismo. Quando ouvi esta notícia cheirou-me de imediato a esturro. Não faço ideia do que aquela rapaziada – anos a fio “teúda” e “manteúda” nas suas malfeitorias por desgraçado desinvestimento na prevenção criminal – terá feito. Por outro lado, obtemperei, os jornalistas e mesmos os polícias tem coisas bem mais importantes que cuidar do que reflectir sobre o facto de que nem pela circunstância de um determinado comportamento ter cabimento na letra de uma norma incriminadora se deve, sem mais, concluir pela verificação substancial do crime nela previsto. Coisas como necessidade de a interpretação da lei penal se efectuar por referência aos valores ou interesses protegidos pela incriminação ou ainda a “redução teleológica” dos tipos criminais por via interpretativa, quando necessária for, são cuidados demasiado filigrânicos para serem considerados por não especialistas e, de resto, impróprios para consumo imediato do povoléu ávido de acção. Isto é tudo compreensível.

Mas, depois, já de pé mais atrás, comecei a pensar que talvez a minha primeira e abrupta impressão estivesse algo desfocada ou mesmo eivada de uma dose não despicienda de ingenuidade. Pensei nas tricas corporativo-regionalistas que vêm contumazmente infectando o bom andamento das investigações criminais. Com este pano de fundo, a coisa tornou-se ainda mais clara quando me apercebi que a busca no domicílio dos suspeitos foi levada a cabo num Domingo e acompanhada in loco por uma cadeia de televisão, que nos fez o obséquio de prodigalizar imagens as mais instrutivas. Perguntei-me pelo segredo de justiça (como é que a televisão sabia da busca?), pela consideração elementar da privacidade dos que ali viviam (não apenas os suspeitos mas muitas outras pessoas) e por quem teria autorizado ou tolerado tal desmando. Confuso ainda, concluí ao menos pela ironia de se ter censurado – e bem – aos ditos rapazes o uso de métodos próprios do far west (a extorsão, a agressão ou mesmo o homicídio) e de, ao mesmo tempo, se reagir contra esses métodos de modo que igualmente fica a dever, em muito, salvaguardadas as distâncias devidas, à lisura de actuação que se deve presumir e exigir a órgãos do Estado. As preocupações – e as certezas de que algo vai podre neste Reino – adensaram-se quando verifiquei que não só o crime de terrorismo terá ficado por terra em relação aos suspeitos presos preventivamente como alguns dos perigosos terroristas foram restituídos à liberdade sujeitos a termo de identidade e residência! Suponho e estou mesmo certo de que quem decidiu assim o fez em plena consciência e em escrupuloso respeito pela lei (e, de resto, por motivos óbvios, nunca poderia ser minha intenção apreciar um tal ponto). Não fosse por outras razões – e será, decerto – seria desconcertante que tão perigosos delinquentes (como se tem por definição de presumir, tratando-se de terroristas) fossem restituídos às ruas com alvará para espalhar o terror (não se deve olvidar que esta é, precisamente, a especialidade dos terroristas).

Ficou no ar, portanto, a ideia de que a imputação de terrorismo aos citados suspeitos, tratando-se de imputação gravíssima, partisse de onde partisse, terá ficado a dever não pouco à substanciação respectiva. O caso não é virgem, entre nós (lembram-se do caso da Guarda, com Abílio Curto?). Então que razões terá servido a citada overcharging? Sim, que razões, pois uma coisa é certa: a chamada sobre-imputação em matéria penal não é um acaso – ela serve sempre certas funções. Noutras latitudes o fenómeno está amplamente estudado, quanto à sua origem, funções e efeitos, entre os quais pontifica o relevante contributo para a perda de confiança da comunidade no Sistema Penal. Entre nós, não conheço quem lhe dedicasse atenção. O que não se deverá, certamente, à falta de matéria-prima.





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