30 novembro 2007

 

Três notas sobre questões judiciais

Três notas, a partir de referências do semanário Expresso, sobre questões judiciais:
Nos “Altos e Baixos” do aludido semanário, do passado dia 24, é colocado ao fundo da coluna e, portanto, com sentido negativo, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e presidente do Conselho Superior da Magistratura, por causa de três decisões dos tribunais: o caso da menor Esmeralda, em que foi decidido entregá-la ao pai biológico; o caso do cozinheiro seropositivo, que foi considerado incapaz para o desempenho da função e o caso de um tal “caluniador”, que teria sido ilibado por o caluniado não ter feito a prova da inocência dos crimes que lhe imputavam.
Ora, o que causa espanto é o entendimento de que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, seja nessa qualidade, seja na de presidente, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura, é responsável pelas decisões dos juízes. Com efeito, estes, enquanto membros de órgão de soberania, decidem soberanamente dos casos em litígio que lhes são submetidos para decisão, sem que qualquer entidade ou órgão (mesmo o Conselho Superior da Magistratura e, muito menos, o seu presidente e presidente do Supremo Tribunal de Justiça), possa interferir no exercício desse poder soberano. Por isso mesmo, é que os juízes são independentes, irresponsáveis (no sentido de que não respondem pelas suas decisões perante outros órgãos, entidades ou poderes) e não estão inseridos em qualquer estrutura hierárquica. Assim, não podem receber ordens ou instruções de ninguém. As suas decisões apenas podem ser escrutinadas por outros tribunais colocados acima deles, havendo recurso. A única hierarquia que se conhece é a hierarquia dos próprios tribunais, podendo os juízes dos tribunais superiores reapreciar as decisões dos juízes colocados em tribunais infra-ordenados àqueles e revogar o que foi por eles decidido. Isso acontece, não por força de qualquer princípio de subordinação hierárquica entre juízes, mas por força dos poderes que legal e constitucionalmente estão cometidos a cada um desses tribunais, devendo os juízes dos tribunais inferiores acatar as decisões dos tribunais superiores, proferidas no âmbito dos seus poderes de reapreciação.
Deste modo, a criticarem-se as decisões judiciais (porque são passíveis de crítica pelos cidadãos, não só os directamente interessados, mas todos os cidadãos, enquanto depositários originários do poder soberano), é totalmente incorrecto endereçar as críticas ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou ao Conselho Superior da Magistratura, pese embora o poder disciplinar que este detém sobre os juízes, e casos haverá em que certas decisões podem dar origem a responsabilidade disciplinar e mesmo a responsabilidade criminal e civil, se o juiz actuar com violação censurável das leges artis ou cometendo algum crime que esteja na base da decisão.

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Ainda com respeito a questões judiciais, o director do Expresso, no mesmo número do passado dia 24, na sua crónica semanal, a propósito da chamada “funcionarização” dos juízes, rebelou-se – e bem – contra ela, por causa da independência dos juízes e da autonomia do Ministério Público. Todavia, expendeu a ideia de que “coisa diferente é os senhores magistrados não terem de trabalhar, de produzir, ou fazerem-no (…) de acordo com o brio pessoal de cada um”. E, sustentando que, se há magistrados que têm brio e trabalham, muitos outros não produzem. A ideia é mais ou menos esta, embora expressa de outra maneira. Ora, segundo ele, não há mecanismos de controlo para responder a estas situações, porque a avaliação feita pelos conselhos superiores é “automática” e quase todos são tidos como “perfeitos”.
Ora, uma ideia injusta que está a fazer caminho (e este Governo tem muitas responsabilidades nisso) é a de que os magistrados, em geral, não trabalham ou trabalham pouco. O problema das férias, que, como toda a gente hoje reconhece, teve sobretudo foros de demagogia, foi um dos pretextos para o lançamento dessa ideia. Eu gostava de ver quantos profissionais de outras profissões trabalham em geral tantas horas como os magistrados. Essa será, porventura, a crítica mais acerba e mais inaceitável que lhes fazem, não obstante haver uns tantos, como em todas as profissões, que a merecem. Quanto às avaliações dos conselhos superiores serem “automáticas”, é uma ideia peregrina ou, pelo menos, imperceptível. Compreendo o que o director do Expresso quer dizer com o serem tidos quase todos como “perfeitos”. Tal remete para a ideia, que por vezes se ouve, de as avaliações que são feitas pelos inspectores judiciais e do Ministério Público serem feitas por alto, com vista às promoções na carreira. Todavia, mesmo a admitir-se fundamento para essa ideia, ela não tem a ver com o encobrimento corporativo da “calaceirice” dos magistrados. É essa uma ideia completamente destituída de fundamento. Mas, se se entender necessário avaliar, por uma comissão de pessoas estranhas às magistraturas o nível de produção dos magistrados, mas sempre, como é óbvio, na dependência dos conselhos superiores, que – diga-se – não têm só membros eleitos pelos próprios magistrados, mas também de outras proveniências, podendo, inclusive, obter-se condições (já as há, teoricamente, pelo menos no Conselho Superior da Magistratura) para uma maioria desses membros sobre os restantes, por que não admitir essa comissão? Estou convencido de que o resultado só desapontaria aqueles que pensam que os magistrados, em geral, trabalham pouco.

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Um terceiro apontamento, que é a manifestação de uma decepção: o cronista Daniel Oliveira, no mesmo número do Expresso, ter tido necessidade de, para exprimir o seu cepticismo em relação ao Supremo Tribunal de Justiça, se socorrer dessa verdadeira pérola dos cronistas sem imaginação e sem informação, que é a eterna referência à “coutada do macho ibérico”.





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