01 abril 2007

 

Retratos

Como vem sendo um hábito recente no Supremo Tribunal de Justiça, os juízes posaram, mais uma vez, no salão nobre, para a fotografia.
Dantes, só os presidentes tinham direito a retrato. Desde a criação do tribunal por Mouzinho da Silveira, em 1833, os presidentes foram legando a sua imagem à posteridade em retratos que foram sendo dispostos pelas paredes do corredor adjacente ao dito salão nobre. E a verdade é que os retratos têm vindo a suceder-se, a ponto de galoparem já pelas paredes acima, o que não seria caso para admiração em quase 200 anos de história, mas notando-se que, nestes últimos 30 anos, os retratos se têm sucedido a um ritmo mais acelerado, certamente por influxo do 25 de Abril, que introduziu algumas regras democráticas na eleição dos presidentes e estabeleceu a limitação temporal dos mandatos. Basta dizer que, entre 1833 e 1974, só houve 23 presidentes, e nestes últimos 30 anos já houve uma dúzia deles.
Também depois da revolução os vice-presidentes passaram a ter direito a figurarem nas paredes, criando-se para tanto uma galeria própria, na ala onde se encontram os gabinetes dos ditos. Como os vice-presidentes são aos pares, os retratos atingiram já um número significativo. Porém, como é “natural”, não ostentam a pompa dos retratos dos presidentes, sendo a preto e branco – mais propriamente fotografias ampliadas -, enquanto os daqueles são retratos no sentido mais clássico, isto é, pintados por artista plástico, ainda que, porventura, a partir de fotografia, pelo menos nos anos mais recentes.
Neste movimento de “democratização” retratista (uma democratização evidentemente limitada e hierarquizada) , o direito a figurar nas memórias da “casa” passou a estender-se, desde os últimos três ou quatro anos, a todos os juízes do Supremo. E daí que se tenha criado também a galeria dos juízes, no 4.º piso, onde se situa a maior parte dos seus gabinetes. Estas fotografias são a cores e, evidentemente, tiradas em conjunto, no salão nobre. O direito que cada um tem ao seu quinhãozinho de glória encontra-se, assim, disseminado pelo conjunto das cerca de seis dezenas de juízes, reduzido, com excepção dos que se encontram na primeira fila, praticamente à cabeça e a uma parte do tronco, onde, por cima da beca abotoada, se destaca, sobre o preto dela, o colorido do colar, também de introdução recente nas insígnias distintivas do corpo judicativo do tribunal. Ao ritmo de um “retrato” por ano, imagina-se a rapidez com que os quadros emoldurados contendo as sucessivas levas de juízes irão invadindo as paredes, até que o direito à memória consiga resistir ao tempo, e a mão burocrática de um qualquer funcionário os arrecade com a delicadeza possível numa das muitas dependências de coisas inúteis que costuma haver nos serviços do Estado.
Bem, mas o que me levou a esta digressão pela “política” de perpetuação das memórias dos “notáveis”, neste caso do Supremo Tribunal de Justiça, foi eu ter topado recentemente, nas páginas da revista “Visão” com uma foto dos juízes do Tribunal Constitucional, inserida numa notícia sobre a renovação de parte dos juízes deste tribunal, por terem cessado o mandato. Que diferença entre esta foto de conjunto e a dos juízes do Supremo! Só por si, esta, digamos, diferente metodologia iconográfica mereceria uma boa página de análise, à altura do Roland Barthes das “Mitologias”.
Enquanto os juízes do Supremo Tribunal de Justiça aparecem num conjunto uniforme, bem alinhado, em filas que vão em escala ascendente, por degraus, envoltos nas suas becas, conspícuos, sem singularidades distintivas para além das que os distinguem como grupo – um grupo à parte no seio de todos os grupos profissionais que trabalham no Supremo -, os juízes do Tribunal Constitucional, também formando um grupo à parte, aparecem nos seus trajes “profanos” e assumindo atitudes que pretendem marcar a singularidade de cada qual: uns sentados, outros de pé, este com o cotovelo apoiado no degrau duma escada, aquele servindo-se do tampo de uma mesa como assento, e todos arremedando um ar descontraído e até, em alguns aspectos, “négligé”, numa atmosfera intimista, de que o enquadramento recolhido da sala contribui para aumentar a densidade e o clima intelectual. Em suma, são outros juízes, com outro estatuto, outras regalias, outro perfil, outro modo de selecção, simultaneamente (ou supostamente) mais elitista e democrático. E são muito poucos, em comparação com os juízes do Supremo, formando um verdadeiro escol. São os juízes do Palácio Ratton. É natural que tudo isto se traduza na pose com que se pretende passar à posteridade. Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em estilo mais convencional e muito próximo de qualquer daqueles retratos de grupo que nos habituámos a ver, desde os colectivos de colégio aos finalistas de um curso universitário, passando pelos grupos orfeonistas ou de qualquer outra turma semelhante; os do Tribunal Constitucional, em estilo mais informal, mas sem dúvida mais próximo de uma plêiade de notáveis, em que a excelsitude do grupo é indissociável da singularidade dos seus membros.





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