24 abril 2007

 

Para os ricos, um direito penal pobre


O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, adquirir um património ou um modo de vida que sejam manifestamente desproporcionais ao seu rendimento e que não resultem de outro meio de aquisição lícito, com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, é punível com pena de prisão até 5 anos”. Esta é a proposta de redacção do Grupo Parlamentar do PSD para o crime de enriquecimento ilícito (existe proposta análoga para o diploma que rege sobre os crimes dos titulares de cargos políticos). Para além de relevar de inqualificável técnica legislativa, é um exemplo eloquente dos perigosos ventos de política criminal que nos assolam de forma crescente. Assim:

Em primeiro lugar, ele traduz bem um sentimento de que o Estado é incapaz de lidar satisfatoriamente com certo tipo de crime. Mas em vez de se ensaiar o refinamento e sofisticação dos meios de investigação (o que não quer dizer, por força, mais meios), propugna a fuga para a frente, que não se sabe bem onde nos pode levar, mas que se intui não seja a lugar recomendável. Com efeito, todos estaremos de acordo que a titularidade de um património, ou um certo “modo de vida” (que a proposta também define), manifestamente incompatíveis com os rendimentos de determinada pessoa são, podem ser, indício de ilícito (não necessariamente penal). Pois bem, incapaz de tornar, pela investigação, o indiciado ilícito na “certeza” que define a ilisão da presunção da inocência, pretende-se com esta celerada proposta criminalizar o próprio indício(!), atropelando sem apelo e nem agravo aquele sacrossanto princípio.

Em segundo lugar, pretende-se com a dita proposta fazer entrar pela janela o que não se quis, até agora, deixar entrar pela porta: a inversão do ónus da prova, onerando o arguido. Na verdade, é de notar que ali se ressalvam os “modos de vida” e património “que não resultem de outro meio de aquisição lícito”. Isto é, parece que se procura, sem mais, extrair do não apuramento da licitude dos meios …. a ilicitude dos meios (e isto é tanto assim quanto da epígrafe do preceito consta a expressão “enriquecimento ilícito”). Como é óbvio, com isto atira-se sobre os ombros do arguido o pesado fardo de provar a licitude dos meios de aquisição do património (ou dos “modos de vida”), pois só esta, e não um non liquet, o exime da responsabilidade criminal.

Em terceiro lugar, e incompreensivelmente, faz-se alusão a um “perigo” – isto é, a probabilidade de positivação de um mal futuro em dano – referido ao passado! Este absurdo resulta claro da seguinte passagem: “com perigo de aquele património ou modo de vida provir de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas”. Como está bom de ver, o património ou os “modos de vida” resultaram, ou não resultaram, de vantagens obtidas pela prática de crimes cometidos no exercício de funções públicas, não se compreendendo o que seja o perigo de essas vantagens terem resultado da prática de crime.

Quem é que o GP do PSD consultou para apresentar tal proposta, não sei. E decerto não terá sido Bártolo e nem Acúrsio. O que sei é que se trata de uma proposta tributária de alguns dos mais perniciosos traços da política criminal das sociedades contemporâneas: aquela que em nome da eficiência propugna a lassidão das estruturas de imputação do crime. Estas últimas, como se sabe, não são um fetiche de académicos sem mais que fazer. Elas são a garantia primeira de que o sistema penal separa o trigo do joio, o que é dizer, os culpados dos inocentes.





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