20 novembro 2006

 

O estranho caso do procurador especial

Logo que li no “Público” de quinta-feira passada a notícia sobre a ideia da criação da figura do “procurador especial” para exercer a acção penal, deduzindo acusação e sustentando-a em julgamento naqueles casos, como o de Camarate, em que o Ministério Público se abstivesse de acusar e o Parlamento, em inquérito da sua competência, concluísse haver indícios de crime, reagi imediatamente pondo-me a dedilhar as teclas do computador, com vista a uma prosa para o blogue. Porém, os afazeres profissionais não me deixaram acabar a prosa começada. E agora, se retomo a ideia, é já em novos moldes, porque vários colaboradores do “sine die”trataram já a questão em termos coincidentes com as críticas que eu queria fazer e, porventura, até de uma forma mais profunda e ilustrada do que eu o saberia fazer.
Por isso, esta prosa, para além de constituir ocasião de eu manifestar a minha adesão às ideias já expressas por Paulo Dá Mesquita, Pedro Soares de Albergaria e, por fim, por Maia Costa, é apenas mais um desabafo, do que outra coisa. Desabafo que eu também pretenderia de estupefacção por a proposta ter surgido do PS, que nestas matérias (e noutras, mas é de processo penal que agora curo) tem vindo a demonstrar uma fragilidade e uma sinuosidade teóricas notáveis, e por essa proposta representar uma subversão paródica dos mais elementares princípios do processo penal português e da figura do “special prossecutor” dos Estados Unidos da América.
Na verdade, a figura do “special prossecutor” nasceu nos Estados Unidos como forma de emprestar objectividade e credibilidade ao exercício da acção penal quando estivesse em causa a investigação de determinados crimes contra políticos, nomeadamente em casos de corrupção, pois o Ministério Público, lá, tem uma natureza política, de completa vinculação ao executivo, regendo-se por critérios de oportunidade e não de legalidade, e não estando sujeito ao princípio da objectividade. Exerce, pois, a acção penal segundo critérios políticos, perseguindo ou deixando de perseguir certos crimes segundo as conveniências prevalecentes em determinados momentos. Neste contexto, a figura do “procurador especial” surgiu como contraponto a esse tipo de Ministério Público, para dotar o exercício da acção penal em certos casos de um representante independente.
Cá, passa-se exactamente o contrário: o Ministério Público é uma magistratura autónoma, que está sujeita aos princípios da legalidade e da objectividade. De modo que a figura do procurador especial, com base no Parlamento, serve para quê? Para dar uma objectividade e uma credibilidade acrescidas ao exercício da acção penal em certos casos? Para suprir as falhas do Ministério Público, constituindo-se o Parlamento em seu órgão substitutivo, ou em seu órgão supervisor e fiscalizador, como parece pretender também o PSD, que já foi um acérrimo defensor do modelo de Ministério Público que depois veio a prevalecer na Constituição? Ou será para criar um Ministério Público político para exercer a acção penal em casos políticos, como decorre da ideia veiculada através do “Público” de sábado, segundo a qual esse “procurador especial” actuaria em casos de terrorismo e crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, homicídio contra membro de órgão de soberania, altas figuras do Estado ou atentado contra o presidente da República?
Ou seja, teríamos um Ministério Público especial criado no exacto avesso dos princípios da objectividade, da credibilidade, da legalidade e da autonomia. Bonito serviço!
Será preciso lembrar que o PS já quis criar um foro especial para os políticos?





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