19 outubro 2006

 

Quando é crime dizer não




Ontem, passava eu os olhos pelo sine die e li o comentário de Luís Eloy Azevedo, ali colocado por Paulo Dá Mesquita, em jeito de “desafio”, e versando a problemática do, assim chamado, “negacionismo”. Por coincidência, tinha em mãos, em fim de leitura, a recente tradução portuguesa (Edições 70, Textos Filosóficos, Setembro de 2006) de Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill. Obviamente, foi inevitável reflectir sobre o que (com a genialidade que é de esperar de quem aos 3 anos aprendeu o grego e aos 8 o latim) ali discerne aquele filósofo e relacionar o pensamento dele com a questão do negacionismo. Tanto mais que o tradutor e introdutor da obra, Pedro Madeira, toca, de entre outros, este assunto, para concluir que Mill se oporia às teses negacionistas (p. XVI e s.).
Nessa obra (cap. II), Mill faz uma poderosíssima – e, porventura, a mais influente – defesa da liberdade de pensamento e discussão, cujos postulados enquadra no princípio geral de que “o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou colectiva, para interferir na liberdade de acção de outro, é a autoprotecção” (p. 39). Ao defender de forma intransigente a liberdade de opinião e de expressar opinião como “necessárias para o bem-estar mental da humanidade (do qual todo o bem-estar depende)”, Mill está em condições de concluir (p. 100 e ss.) que: a) “ainda que uma opinião seja votada ao silêncio, essa opinião pode, tanto quanto sabemos, ser verdadeira. Negar isto é pressupor a nossa própria infalibilidade”; b) “embora a opinião silenciada esteja errada, pode conter uma porção da verdade, o que frequentemente acontece; e dado que a opinião geral ou prevalecente sobre qualquer assunto raramente ou nunca constitui a verdade por inteiro, é apenas do conflito de opiniões opostas que o resto da verdade tem alguma hipótese de vir ao de cima”; c) “mesmo que a opinião dominante não seja apenas verdadeira, mas constitua também a verdade por inteiro (…), a não ser que se deixe que seja vigorosa e honestamente contestada, e a não ser que isso de facto aconteça, será mantida como um preconceito pela maior parte dos que a aceitam, havendo pouca compreensão ou sentimento em relação aos seus fundamentos racionais.”
Ora, pegando no caso do holocausto, dele pode dizer-se que é uma verdade praticamente incontestada (há sempre os negacionistas), absolutamente dominante. E como tal permanecerá, excepto, talvez, se um dia os ventos mudarem tragicamente e, por absurdo, passar a ser crime afirmar que o holocausto ocorreu… Não deve olvidar-se que as teses negacionistas – mais uma das muitas expressões do pensamento politicamente correcto – implicam uma coisa óbvia: a existência de correctores políticos; e correctores com o poder de impor a ortodoxia (a sua ligação com formas mais ou menos explícitas de autoritarismo é, assim, inequívoca) – e os correctores políticos de hoje podem não ser os mesmos de amanhã.
De qualquer modo, sendo o holocausto uma verdade estabelecida, talvez não se possa dizer o mesmo de todos os seus aspectos: morreram 4 milhões ou 6 milhões? Qual o grau de participação e implicação de judeus? Etc. Compreensivelmente, para as mais das pessoas (como para mim), estas questões são, no mínimo, irritantes e mesquinhas. Mas julgo não errar se disser que a resposta a elas está longe de ser irrelevante como tópico de investigação histórica e mesmo de discussão em geral, para quem se quiser dar ao trabalho. Manter a liberdade de expressão e até de investigação confinadas pelas baias da lei e sujeita aos humores da casuística do tribunal (de ordinário, ele próprio fio condutor da ortodoxia) é misturar papéis que só muito limitadamente se podem (devem) baralhar (às vezes é inevitável, como sucede, por exemplo, no julgamento de crimes de guerra), sem prejuízo do que se espera da função do historiador – investigar a verdade histórica – e da função do juiz – assegurar a liberdade de cada um a livremente exprimir-se.
Claro que a liberdade de expressão tem limites. Voltando ao nosso Stuart Mill, “a opinião de que os comerciantes de trigo fazem os pobres passar fome, ou que a propriedade privada é um roubo, devem ser deixadas em paz quando simplesmente divulgadas na imprensa, mas poderão incorrer justamente em castigo quando ditas a uma turba exaltada reunida perante a casa de um comerciante de trigo, ou quando distribuídas entre a mesma turba sob a forma de cartazes” (p. 105 e s.). Aqui a possibilidade de dano sobre terceiro é uma realidade, é altamente plausível. O Estado está legitimado a intervir. O nosso legislador penal teve isso em consideração, porquanto a negação de crimes de guerra ou contra a humanidade só é punível quando ocorrer intenção de incitar à discriminação ou de a encorajar, em função da raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, e ainda assim com exigências acrescidas no que respeita aos meios de execução do facto, de modo a abranger, apenas, aqueles potencialmente mais danosos (artigo 240.º, n.º 2, al. b), do CP). Esses, segundo creio, são os limites para lá dos quais julgo não se poder avançar sem lesão irreparável do valor – estruturante numa democracia – da liberdade de expressão. Aquelas cautelas do legislador penal são, de resto, eco de prescrição constitucional: quem elaborou a Lei Fundamental teve o cuidado de blindar o valor da liberdade de expressão a “qualquer tipo ou forma de censura” (artigo 37.º, n.º 2, da CR). Censura: outro nome para negacionismo.
Por enquanto, parece que estamos mais ou menos protegidos do vírus autoritário do negacionismo. Porém, não deixa de ser angustiante e perturbante verificar que ele já está nas nossas fronteiras e que “verdades” como as de Mill estão hoje tão relativizadas. Neste particular, não me arrependo de dizer que prefiro ficar orgulhosamente só. Esperando que ninguém se lembre de criminalizar o negacionismo do negacionismo.
(com correcções em 19.10.2006, às 23:13, hora dos Açores)





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