20 outubro 2006

 

Negacionismo: uma tréplica


A elegante réplica de Luís Eloy Azevedo à minha “negação do negacionismo”, merece tréplica, que alinho em meia dúzia de pontos:

1 – No que respeita à relevância de Mill para a discussão sobre o negacionismo, julgo que a mesma não deve ser desprezada pelo facto de se tratar de pensador que escreveu boa parte da sua obra há 150 anos. Muita da aparelhagem conceptual com que hoje esgrimimos argumentos a favor desta ou daquela posição, nas mais díspares matérias, filia-se, por vezes sem grandes modificações, em ideias que foram primeiramente trazidas a debate há bem mais do que 150 anos. E, de resto, precisamente, a relevância do pensamento de Mill para a questão do negacionismo e, em geral, para a chamada problemática dos “discursos de ódio” (hate speeches) não é coisa nova. Ela é debatida nos meios académicos, sendo o texto de Keith N. Hylton, “Implication of Mill`s Theory of Liberty for Regulation of Hate Speeches and Hate Crimes”, 3 University of Chicago Law School Roundtable, 1996, p. 35 e ss., um exemplo eloquente de como o pensamento daquele filósofo, pela sua funcionalidade e valor, não deve ser posto de lado – antes pelo contrário – em questões como a aqui debatida.

2 – Em segundo lugar, usar o princípio do dano precisamente para legitimar as teses negacionistas – entendendo estas como a pura e simples negação do holocausto ou outro acontecimento e não a negação nos termos em que, por exemplo, vêm regulados na nossa lei penal – é, segundo creio, ir longe de mais. Seria preciso “dar um salto” longo em demasia e afirmar que a mera negação daquele acontecimento trágico tem dignidade penal e que o comportamento respectivo necessita de pena. Coisa que o nosso legislador não entendeu, e bem. E outro entendimento só a custo pode extrair-se do pensamento de Mill. Ou seja, a necessidade de autoprotecção como modo de legitimar o negacionismo é um quod erat demonstrandum.

3 – Em terceiro lugar, não estou convencido que se possa lidar com a questão, correctamente, na perspectiva de que abrangida pelo negacionismo esteja, apenas, “a negação de factos inquestionáveis”. Num interessante e relativamente recente artigo de opinião, João Pedro Marques (“Talidomida: A História sob a jurisdição dos Tribunais”, Atlântico, 13, 2006, p. 20 e ss.) deu-nos vários exemplos de que pode não ser bem assim. Um deles é o do historiador britânico Bernard Lewis, que em 1993 questionou que o massacre de arménios por turcos em 1915 tivesse “obedecido a uma política de genocídio”. Lewis não negou a matança mas questionou a “classificação” dela. Foi condenado. Outro caso relatado pelo autor é o do historiador francês Olivier Pétré-Grenouilleau que contestou o rigor da alegação daqueles que se dizem descendentes de escravos. Como a escravatura foi abolida nos meados de XIX aquela alegação relevaria tão só de opção ideológica, uma vez que eles seriam, igualmente, descendentes de gente livre. Parece que está a braços com a justiça penal. Estes casos, e muitos outros, revelam bem que a linha de demarcação entre o que é ou não “facto inquestionável” não está pintada a preto sobre o branco. É uma linha grossa e muito cinzenta.

4 – Mas ainda que se possa conceder que há casos susceptíveis de serem alcandorados a “factos inquestionáveis” (assim guardo para mim, de entre outros, o Holocausto), nem por isso me parece que a negação deles, fora de quadros muito exigentes em termos de censurabilidade (e, antes ainda, de danosidade) da conduta (relevarão, de entre outros, os meios de divulgação – p. ex., a imprensa – e uma manifesta intenção de incitar à violência em função de factor arbitrário) possa ser levada à conta de crime e merecer o remédio radical da sanção penal. Uma vez mais, Mill tem aqui uma palavra a dizer, que é a de que uma verdade só mantém o seu vigor enquanto for livre e amplamente contestada. Se não for contestável é dogma, não verdade. Devemos perceber o valor disso para uma sociedade sã e livre.

5 – Por outro lado, os tiques negacionistas podem abrir uma “caixa de Pandora”, tudo ficando por conta do que a correcção política, do alto da sua infalibilidade, em cada momento prescrever. A verdade é que, como há alguns (poucos) que negam o Holocausto, também há uns tantos que repudiam o facto de que o Homem chegou à lua; e outros ainda fazem não pouco lucro vendendo livros cujo argumento é o de que o 11/9 foi uma conspiração americana, que não foram terroristas que mataram mais de 3000 pessoas, mas sim o imperador-demónio Bush. Pergunto: todas essas idiotias merecerão sanção penal? É claro que não, dirão alguns: a questão é de grau. Para a Humanidade, a chegada à lua foi um gigantesco passo adiante, o Holocausto foi um gigantesco passo para trás. Aqui a coisa é clara e a negação dos passos adiante (por razões que me escapam, na lógica negacionista) não merecerá a mesma censura do que a negação dos passos para trás. Já o 11/9 …, depende do lugar que se perspective, podendo nalgumas latitudes, ao menos, ser considerado “passo adiante”. Porém, ver as coisas assim é muito perigoso; é perder a perspectiva de que o que está em causa é nos exprimirmos livremente; é colocar a questão do “grau”, a questão daquilo que podemos ou não dizer, sujeito aos humores de senhores que não sei bem quem são; e em matéria que – posto que não fira notoriamente quem quer que seja – que releva da formação e da consciência de cada qual. Com a qual o Estado não tem nada que ver.

6 – Por fim, confesso que não conheço a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, neste particular. No entanto, se ela é no sentido de dar guarida à punição do negacionismo, então acho que o que se deve fazer é questioná-la. Quanto à nossa Lei Fundamental, julgo que ela veda uma tal solução criminalizadora, nos termos que referi no meu primeiro postal, nesse sentido indo, por exemplo, Maria João Antunes, no seu comentário ao artigo 240.º, do CP (Comentário Conimbricense do Código Penal, II, Coimbra: Coimbra Editora, p. 575 e s., § 5).





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