30 setembro 2006

 

A Igreja e a IVG

Das palavras do Patriarca de Lisboa sobre o (próximo?) referendo do aborto retiro de útil que os bispos desta vez não vão fazer campanha. Acentuo "bispos" porque, a interpretar as declarações à letra, os padres (mais próximos até do eleitorado e das "ovelhas" da Igreja) não estarão impedidos de o fazer. E muito menos os movimentos de "leigos" dependentes da hierarquia católica.
Sabemos que, no outro referendo, vários bispos intervieram na campanha, alguns descabeladamente. E também sabemos que a influência da Igreja foi decisiva para o resultado do referendo.
Será que desta vez a Igreja arrisca "perder"? Tenho muitas dúvidas.

 

Para que serve o Ministério da Economia?

O encerramento da actividade de mais uma multinacional no nosso País, evidentemente apesar dos esforços do Ministro da Economia, que disse que não podia fazer nada, porque se tratava de uma empresa privada, leva-me a pôr em dúvida a utilidade daquele ministério. É que já foram tantas as fábricas estrangeiras que fecharam, sempre contra a vontade do Ministro, que sempre foi impotente para se opor, e pelas mesmas razões (são as regras do mercado, não é verdade?) que me parece do mais elementar bom senso, em tempos de vacas magras e de reformulação da administração pública, extinguir, pura e simplesmente, o dito Ministério da Economia. O Ministro, que segundo parece é um empresário de sucesso, ia à sua vidinha, e o Estado (e os "contribuintes", não é?) pouparia o desperdício de um serviço inútil.

29 setembro 2006

 

Reabertura da caça

Reabriu a caça aos funcionários públicos, esses inimigos sociais, agora a propósito de um relatório sobre carreiras e remunerações.
São extraordinariamente úteis estes relatórios, muito objectivos, muito científicos, muito oportunos, que dizem exactamente o que o Governo quer ouvir e são divulgados quando o Governo precisa.
Abater o "monstro" é a palavra de ordem. Ou seja: reduzir serviços e reduzir o número de funcionários, reduzir os direitos e garantias dos que ficarem, precarizar o emprego. Aliciante programa.
Diz-nos a comunicação social em peso que devemos regozijar-nos: vai acabar o desperdício, a maladragem, a parasitagem social. E vamos pagar menos impostos. (Mas não haverá aqui um equívoco? Não são precisamente os funcionários públicos dos poucos que pagam impostos? Aliás, eu gostaria de ver as declarações de IRS de alguns desses que estão sempre a falar em nome dos "contribuintes"...)
Mas onde é que vão ser feitas as grandes "poupanças"? Será na educação e na saúde, como já alguns "especialistas" avançaram? Se for assim, não creio que "menos Estado" seja "melhor Estado". Creio, sim, que "menos estado" nesses bens públicos essenciais trará inevitavelmente maior desigualdade social. "Menos Estado" será então "pior País".

 

O Referendo sobre o aborto



O mês de Outubro está a chegar e com ele a discussão sobre o aborto.
Avançando o referendo sobre o aborto, suponhamos que há uma ampla participação popular. E que uma vez contados os votos, a maioria vota "sim" (suposição esta que não tem como pressuposto o facto de o PS ter ganho as eleições legislativas e que tal signifique que todos os seus eleitores sejam favoráveis ao "sim", pois tenho dúvidas que nesta matéria a fronteira seja assim tão delimitada).
Mais do que discutir os argumentos, que são já sobejamente conhecidos, o objectivo deste post é o de lançar algumas perguntas caso efectivamente esse venha a ser o cenário. Aqui ficam:

1) É o aborto uma questão exclusiva da mulher?
2) Em que termos pode (ou deve) o homem interferir na decisão da mulher em pôr termo a uma gravidez?
3) Admitindo que pode, é unicamente de exigir que se trate do “pai”, mesmo que não mantenha com a “mãe” nenhuma relação de carácter mais ou menos estável?
4) Ou, ao invés, é de exigir um vínculo afectivo mais estável?
5) Como regular o consentimento informado?
6) Se for uma menor, quem deve dar consentimento? Os pais ou aqueles que detêm o exercício do poder paternal?
7) A menor? E a partir de que idade? Dos 12 (v. artigos 1981º, nº 1, alínea a) e 1984º, alínea a) do Código Civil)? Dos 14 (v. artigo 38º do Código Penal)? Dos 16?
8) E se se prescindir do consentimento da menor?
9) Deve a menor ser ouvida?
10) E no caso de ter que se proceder unicamente à sua audição, quem a ouve, para que fim e quem decide a final?
11) E se os pais negarem o consentimento, pode este ser suprido?
12) Como regular a objecção de consciência dos médicos e dos funcionários de saúde?
13) É de exigir um período de reflexão?

 

Bush ganha, a América perde

Segundo o Le Monde de 25.9.2006, a administração Bush está prestes a vergar o Congresso, em termos de a legislatura ratificar as decisões tomadas por Bush na sua "Guerra ao Terror". O que implica, segundo o jornal, que a CIA poderá, sob autorização do Presidente, lavar a cabo interrogatórios de suspeitos de terrorismo em violação das leis americanas e das leis internacionais. Ou seja, e sem rodeios: torturando.
Contra este sombrio caminho que as coisas levam, está - de entre outros -, com destaque, o congressista John McCain, antigo prisioneiro de guerra no Vietname. Este concerteza que sabe do que fala...

 

Tempos difíceis, escolhas difíceis



Recentemente (em 15.Fev.2006), o Tribunal Constitucional Federal alemão (TCA) debruçou-se sobre uma norma que constava de um diploma federal (Lei da Segurança nos Transportes Aéreos) que conferia ao ministro da defesa o poder de ordenar – ainda que, obviamente, como medida de último recurso – o abate de um avião de passageiros quando tivesse razões para crer que ele fora tomado por terroristas e que estes pretendiam usá-lo como arma contra pessoas, no solo. Portanto, uma norma notoriamente decalcada sobre as preocupações postas pelo 11/9 e com a qual se pretendia munir o Estado de um instrumento normativo supostamente capaz de responder a dilemas como o da ponderação entre a vida dos passageiros que seguissem no avião e a dos cidadão visados pelos terroristas no solo.
Trata-se, como se vê, de assunto que tem notórios pontos de contacto com a acalorada discussão em curso, nos E. U. A, sobre a admissibilidade da tortura, em casos extremos, e que parte invariavelmente de um cenário dilemático, que é o de saber se é jurídica e moralmente legítimo torturar um suspeito de terrorismo a fim de ele indicar o local onde se acha, na iminência de deflagrar, uma bomba relógio susceptível de provocar um grande número de vítimas inocentes (“ticking bomb hypotheticals”). A resposta que se dê a uma e outra hipótese dir-nos-á muito sobre a força de uma democracia, sabido que o resultado de uma tal avaliação é especialmente credível em tempos difíceis, perante situações trágicas e sob a pressão de uma opinião pública pouco inclinada a cuidados quanto à protecção das liberdades cívicas (segundo um inquérito levado a cabo nos E.U.A., 32% dos inquiridos mostrou-se favorável à tortura de suspeitos de terrorismo): em paz e bem nutridos, todos somos bons democratas.
É neste contexto, que a referida decisão do TCA, julgando desconforme com a Lei Fundamental a norma citada, se revela como uma luz de esperança de que, no combate ao terrorismo, as democracias não deitarão fora, juntamente com a água suja, o próprio bebé. Vários pontos da referida decisão poderiam ser realçados, mas julgo particularmente relevantes dois. Em primeiro lugar, merece atenção o facto de o TCA ter refutado o argumento de que os novos desafios postos pelo terrorismo global pudessem ser enquadrados no tópico da defesa, coisa a que a federação se ensaiava, como modo de poder chamar a si competência na matéria (na Alemanha, excepto no que respeita aos serviços de informações e controlo de fronteiras, as questões de segurança interna são competência dos Länder). Ou seja, tal como acontece nos E. U. A. (como já referi neste local, em 18.8.2006) com a chamada “Guerra ao Terror” (e com a “Guerra às Drogas”), também na Alemanha a legislatura julgou que alterando o nome alterava a coisa. O Tribunal não foi na conversa.
Outro ponto crucial da decisão – reveladora de algum activismo judicial, se se tiver em conta que a mera negação da competência da federação poderia ter fechado a questão, naquela espécie – foi o ter sublimado o valor (intangível) da dignidade humana, tal como proclamado (como entre nós) na Constituição Federal. Valor que – independentemente da sua relação com bens como a vida ou a liberdade – constitui, só por si, limite absoluto à intervenção do Estado, uma válvula de escape que, em extremos, permite subtrair o cidadão aos caprichos do Leviatã: matar os passageiros do avião com base na possível prevenção de um perigo grave (que, como tal, pode nem positivar-se em dano) é funcionalizá-los ao ponto de tratá-los como coisa, como parte do próprio avião, assim transformado em arma a abater. Breve, é negar-lhes a dignidade que se lhes não pode negar.
Em termos muito enxutos, e mais genéricos, a decisão em causa, lembra que, no limite, os valores colectivos (como a segurança) hão-de soçobrar perante os direitos individuais – um princípio que as verdadeiras democracias não podem perder de vista e que é comum ser olvidado pelos estados autoritários. Quaisquer excepções a esta ideia só podem contribuir para efectiva radicação e disseminação de uma cultura anti-liberal, que uma vez instalada dificilmente, ou só com impensáveis sacrifícios, se poderá extirpar.
Comentário àquela decisão do TCA, abordando estas e outras questões nela tratadas, pode ler-se aqui.

 

Escutas


Quem esteja interessado numa abordagem exaustiva, mas clara, do programa de vigilância da Agência Nacional de Segurança dos EUA e respectivas implicações jurídico-constitucionais, pode consultar este artigo: Abuso do poder presidencial e violação do 4º aditamento.

27 setembro 2006

 

Dúvida


Ouvi nas notícias que a Lei da Procriação Medicamente Assistida permite a clonagem reprodutiva.

Onde é que me inscrevo?

 

"O aborto não é um problema religioso"


Quem o diz é D. José Policarpo.
E eu assino por baixo.

26 setembro 2006

 

As memórias do Procurador-Geral

O sociólogo Paquete de Oliveira, que escreve no Jornal de Notícias, na última quinta-feira escreveu que Souto Moura, se um dia quisesse e pudesse escrever as suas memórias, poderia causar um abalo, não sísmico, mas político e social. Presumo que Paquete de Oliveira, que conhece bem o ainda Procurador-Geral da República do Centro de Estudos Judiciários, não falou assim por conhecimentos que tenha dos segredos de Souto Moura, mas por deduzir de toda uma série de factos que ocorreram nestes últimos anos e da leitura aparente e latente que eles propiciam, que o Procurador-Geral terá muito para contar e muita coisa escabrosa, que, se viesse a lume, provocaria uma espécie de terramoto. Eu também tenho esse pressentimento.
Souto Moura teve um consulado muito difícil e, à parte erros que cometeu, que são inegáveis, suportou estoicamente o mais verrinoso e sistemático ataque que alguma vez se viu ser desferido contra uma entidade com responsabilidades públicas. Um ataque que mais pareceu um linchamento e que desceu ao achincalhamento canalha. Aliás, um ataque que continua, em vésperas da sua saída, com aspectos de retaliação que só podem encontrar raiz no ódio e no ressentimento. A este propósito, convoquem-se aqui atitudes como a do vice-presidente da bancada do Partido Socialista, que a pretexto de evitar uma sua ida ao Parlamento reclamada por alguns deputados (mas será que, no regime actual, o Procurador-Geral presta contas à Assembleia da República?), disse com uma falsa magnanimidade compassiva: “Deixemo-lo sair em paz; o povo português já viu a forma como ele desempenha as funções” (mais ou menos isto). Uma atitude que se inscreve na intenção de amesquinhamento com que têm sido conduzidos muitos dos ataques ao Procurador-Geral.
Por muito polémicos que tenham sido alguns dos seus actos e por muito censuráveis que tenham sido algumas das suas omissões, o certo é que o encarniçamento contra a figura do Procurador-Geral, exactamente porque se trata de um encarniçamento, parece radicar em razões que não são de interesse público, mas de outra ordem.
Ora, a melhor resposta que Souto Moura lhes podia dar, satisfazendo ao mesmo tempo um interesse colectivo, seria, não escrever umas memórias, mas fazer um depoimento em livro, sereno e firme, em que nos desse a perspectiva do modo como decorreu o seu mandato.
Eu, se estivesse no seu lugar, era o que faria. A menos que outras razões imperiosas mo impedissem.

25 setembro 2006

 

Um relatório antiamericano

O relatório dos serviços secretos norte-americanos divulgado pelo New York Times sobre os efeitos indutores de violência, terrorismo e insegurança a nível global imputáveis à invasão e ocupação do Iraque não precisa de comentários, porque diz tudo e com a maior clareza. Resta lembrar que tudo aquilo que se diz ali tinha sido antecipado e denunciado pelos críticos dessa guerra, que foram na altura apodados de "antiamericanos", sem quaisquer atenuantes. Agora que se pode dizer deste relatório?
Não era preciso, aliás, ser muito inteligente para adivinhar os efeitos catastróficos da "intervenção" no Iraque.
Era, sim, preciso ser estúpido, cego ou seguidista bronco para não antever os resultados.
Mas o filme ainda não acabou. Seguramente que os estrategas da Casa Branca, se pudessem rebobinar as cenas da película até Fevereiro de 2003, não hesitariam hoje. (Blair também não).
Vamos ver como lhes correm as coisas nas eleições de Novembro. (Blair já tem o destino marcado, mas ainda não a hora de saída. Ele continua a esbracejar, mas já está em queda livre, só lhe falta mesmo "aterrar").

22 setembro 2006

 

Tudo (ou quase) na mesma nos inquéritos parlamentares

Duas propostas importantes de alteração ao regime dos inquéritos parlamentares, adiantadas pelo deputado Osvaldo Castro (PS), presidente da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, "chumbaram" na direcção da respectiva bancada. Eram as seguintes: relator da oposição e "relatório-sombra". A justificação é exemplar: em democracia, manda a maioria. A verdade, por isso, é propriedade da maioria. Não é novidade.
Mas é assim que querem credibilizar os inquéritos parlamentares?
Parece, no entanto, que foram admitidas algumas alterações com certo alcance, como a presidência da comissão pelo partido requerente. Não seria mau, pelo menos impediria certas manipulações na investigação, como aconteceu notoriamente no último inquérito. Mas será que essa alteração vai mesmo "passar"?

 

Ainda a separação de poderes

O BE apresentou um requerimento na AR para que o PGR, o cessante pressupõe-se, seja convocado para falar sobre o caso "Envelope 9" (requerimento formulado antes da notícia da dedução da acusação, mas possivelmente "reforçado" com essa notícia).
Um pouco de formação constitucional é exigível a todos os deputados, quanto mais aos grupos parlamentares. Pelo menos em matérias básicas, como a separação de poderes.

 

Negócios, esmagamentos e dupla bitola


Sérgio Figueiredo de uma penada analisa a justiça e as corporações aqui, alguns excertos em que se revela a «"essência das coisas"», através do «"jornal oficial"»:

«O Estado português não entra nos tribunais. Não gere o sistema. Paga, mas não manda. [...]
«Poder e Gestão. Eis as palavras mágicas para a reforma que mudará a Justiça em Portugal. [...]
«O Jornal de Negócios é o "jornal oficial" deste tema que é amanhã debatido no Beato. [...]
«Com a esperança de que o Compromisso Portugal ajude. Ajude os partidos no pacto. Ajude a encaminhar o pacto para "a essência das coisas". E ajude no "modo de as levar por diante", esmagando resistências das corporações. Vão lá estar alguns dos seus representantes. Poderá ser um bom começo.»

Minudências para mau entendedor:
Decerto que no Beato não há corporações, lá só fala a nata dos poderes (corporativos) digo representativos, pois os partidos devem exercer o poder, sem ouvir as corporações, já as (corporações) digo as pessoas do Beato não só devem ser ouvidas como seguidas.
De certo que se o Estado (quem seja este dito cujo temos um pouco de difículdade em explicar) paga os tribunais deve aí mandar... mas as forças vivas que sejam pagas (directa ou indirectamente) pelo Estado devem mandar no dito Estado... são despesas de investimento.

20 setembro 2006

 


Não percebo uma palavra do que este senhor está a dizer...


Pensando melhor, se calhar até é melhor que assim seja. Se percebesse poderia não ser capaz de - fosse manhã, tarde ou, até mesmo, noite - discernir a verdade da mentira.

19 setembro 2006

 

O novo PGR

Fiquei surpreendido com a nomeação do Cons. Pinto Monteiro. Surpreendido, embora o seu nome viesse sendo citado, porque o julgava completamente empenhado nos problemas da magistratura judicial e absolutamente alheado do Ministério Público. Aliás, nunca o ouvi falar do MP, adiantar qualquer proposta, ideia ou comentário sobre o MP, o seu estatuto ou a sua actividade.
Posto isto, direi que nada disso impede que o novo PGR faça um bom mandato. A sua inteligência e a sua preparação, a sua cultura, a sua atitude independente, tudo isto são factores que permitem formular um juízo de prognose favorável.
Penso que a autonomia (externa) do MP vai ter no novo PGR um bom garante. Quanto à organização interna do MP, gostaria de dizer o seguinte: têm sido feitos apelos, nomeadamente pelo Bastonário dos Advogados, a um reforço da hierarquização do MP. Ora, seria completamente errado caminhar nesse sentido, porque a hierarquia mitigada do MP é uma outra vertente da autonomia, a sua vertente interna, complemento da outra.
O novo PGR não tem que ser um comandante, um capataz ou um sargento, nem o Cons. Pinto Monteiro, estou seguro, aceitaria esse papel. A função do PGR é de organizador e catalizador da actividade do MP, de forma a rentabilizar os meios e multiplicar energias, a potenciar uma nova cultura, pondo termo às rotinas burocráticas que tanto têm prejudicado a actividade do MP.
Essencial é também neste momento saber comunicar.
A credibilização/relegitimação do MP é tarefa urgente a que certamente o novo PGR vai dedicar-se e tem todas as condições para o conseguir.

18 setembro 2006

 

Multiculturalismo

Os nossos jornais andam cheios de críticas azedas ao multiculturalismo das sociedades ocidentais, que as teria desarmado e exposto aos ataques dos inimigos terroristas vivendo "entre nós" (é uma força de expressão), aproveitando tudo o que "nós" lhes demos (mas então sempre há almoços grátis?) e, ingratos, ainda "nos" espetam facadas pelas costas (metáfora). O caminho a seguir seria exigir-lhes o respeito pelos "nossos valores", sem transigências com culturas incompatíveis com eles.
Esta é obviamente uma narrativa que está na linhagem do "fardo do homem branco" ou da "missão civilizadora do Ocidente", mal disfarçando contornos racistas ao incensar a superioridade da "civilização ocidental", ou seja, do homem branco.
O que estes pregadores apregoam é a intolerância pura e simples para com aquelas minorias identificadas como "inimigas", a imposição de um apartheid legal mais ou menos explícito (proibição do exercício de certos direitos, vigilância policial apertada, etc.), ou mesmo eventualmente a expulsão. A expulsão ou a conversão (receita outrora aplicada, lembremos, aos judeus portugueses, com sucesso, no final do sec. XV).
E os pregadores insistem: os "nossos valores" são universais, são bons para toda a gente, também para eles, portanto.
Arrogância e hipocrisa conjugam-se nesta alegação. Os "valores" por eles defendidos como universais são apenas os direitos civis, as liberdades cívicas, mas já não os direitos políticos, e de maneira nenhuma os direitos sociais e económicos. São os valores do mercado. São esses os valores do Ocidente.
A que, aliás nem todos têm acesso. Porque há os que ficam do lado de fora do "mundo dos valores", porque encontram as portas fechadas. São os que não conseguem passar para a outra margem do Rio Grande ou furar a muralha da Europa-fortaleza.
Portas fechadas em nome de que valores?

 

Os pais são para sempre

É com todo o gosto que publico no Sine Die um texto de Ana Carla Mendes de Almeida.


A precariedade das relações familiares tem várias incidências no desenvolvimento de novas formas de funcionamento entre os seus elementos, sobretudo entre pais e filhos. Na verdade, o conceito actual de família assume contornos dinâmicos e conteúdos não coincidentes. De tal forma a família é diversamente entendida por uns e outros, nuns contextos e noutros, num tempo e noutro, que, hoje, é talvez mais correcto falar em famílias do que em família.

No entanto, seja qual for o contorno conceptual que atribuamos à família, a verdade é que ela sempre comportará o desempenho das responsabilidades parentais, quer porque escolhemos ser pais, quer porque ainda que assim não tenha sucedido, somos filhos.

Se o desempenho das competências parentais no seio de qualquer família, mesmo que na dita tradicional, comporta dificuldades, dúvidas e, tantas vezes, avanços e recuos, apesar da enorme compensação emocional de ser pai ou mãe, é indiscutível que tal tarefa pode acarretar dificuldades acrescidas numa situação de separação ou divórcio dos pais.

Na verdade, uma situação de ruptura emocional, de que o divórcio surge como consequência última, muitas questões passam a ter de ser tratadas e enquadradas num outro contexto.

Não é fácil para quem está emocionalmente perturbado, muitas vezes em grande sofrimento psicológico, separar o conflito existente entre os cônjuges que são também os pais e a relação que ambos devem preservar com os filhos.

Não sendo, na verdade, fácil, é absolutamente determinante que ambos os pais compreendam que a relação parental deve ser o menos beliscada possível em resultado da separação dos progenitores. O desenvolvimento harmonioso dos filhos depende, inquestionavelmente, de poderem continuar a desfrutar de contactos frequentes, harmoniosos e de qualidade com ambos os pais, já que ambos são figuras muito significativas.

É precisamente neste contexto, em que todas as questões são integradas pelo recurso ao critério do superior interesse do filho, que faz sentido abordar o exercício das responsabilidades parentais ou como mais frequentemente se designa, o exercício do poder paternal.

É importante conhecer o que a lei determina como possibilidade quanto ao exercício do poder paternal, mas o mais importante é não perder de vista o contexto emocional e a vertente psicológica desta problemática, quer para compreender o que está em jogo, quer para melhor decidir sobre as várias questões em presença.

Se ao aplicador do direito cumpre não perder de vista o referido critério do interesse da criança relativamente à qual tem de decidir a forma pela qual deverá vir a ser exercido o poder paternal, tanto mais aos pais será de impor a assunção do compromisso de, de forma responsável e equilibrada, minorar o sofrimento que aos filhos a separação também causa.

No campo do exercício das responsabilidades parentais nenhum modelo pode funcionar sem o empenho constante, persistência e perseverança que, finalmente, a todos os pais é pedido no seu desempenho de educadores, separados, divorciados ou não. Mas estaremos inegavelmente de acordo com a afirmação de que os nossos filhos esperam e merecem esse nosso empenho e envolvimento pelo enorme retorno emocional que deles recebemos.

Ana Carla Mendes de Almeida




 

Terroristas colombianos

Há dias rebentou um escândalo "diplomático": as FARC, um movimento de guerrilha colombiano com mais de 40 anos de actividade e indesmentível apoio popular entre o campesinato, mas recentemente "classificado" pela Comissão Europeia como "terrorista", tinham estado representadas na Festa do Avante, o que motivou um protesto do embaixador da Colômbia, que teria deixado "embaraçado" o Governo português.
Entretanto, soube-se que as bombas que explodiram em Bogotá em 31 de Julho (que causaram pelo menos um morto) foram colocadas por militares.
A pergunta é: o exército colombiano (aliás conhecido pela actividade dos seus grupos de elite, os também chamados "esquadrões da morte") vai ser incluído na lista das organizações terroristas?

17 setembro 2006

 

Selecção musical de fim-de-semana





Don't let the sun go down on me
Although I search (...), it's always someone else I see...

16 setembro 2006

 

Apenas falta de senso, nem ilegalidade, nem problemas de separação de poderes...


Afinal é tudo uma questão de bom senso! Diz quem sabe, e que ninguém pense que se trata de uma ilegalidade, cuja ameaça devia ser sancionada, quando os dislates são em nome de boas causas não passam de pequenos excessos. Aliás, quando um pequenote ou uma pequenota, revelando uma determinada visão da ordem jurídica, tem «certas saídas», no fundo para agradar aos mais velhos, em que até mostra uma certa vitalidade, não se deve ser demasiado áspero, pode ser má política de... educação (o excesso de zelo nunca deve ser excessivamente sancionado pois a palmadita podia ser mal interpretada).

PS - Se o poder executivo passasse a assumir por acto administrativo, com recurso à força pública, o poder paternal de alguns menores contra a vontade dos respectivos titulares legais, certamente não «estaria em causa um dos fundamentos básicos do governo representativo, ou seja, a separação de poderes».

15 setembro 2006

 

Amores de Condi Rice

Confesso que me espanta a notícia da eventual "paixão" da Secretária de Estado dos EUA pelo seu "homólogo" canadiano. É que me habituei a vê-la muito assexuada, como as abelhas ou as formigas obreiras, sempre atarefada entre viagens, reuniões, conferências de imprensa, sem espaço para vida pessoal, na sua dedicação imensa às suas funções, sempre em ambientes muito formais e absolutamente masculinos, sempre muito rígida, muito direita, esticadinha mesmo, falando pausamente, monocórdica, sem um sorriso, sem uma ponta de emoção na voz, como se fosse um autómato falante. Uma administrativa, uma executiva, uma burocrata entre burocratas.
A sua fervorosa e militante devoção evangélica, condizente com a condição de filha de um pastor do Alabama, encaixa na figura de estadista, conferindo-lhe um estatuto de missionária, de evangelizadora, serena, mas implacável.
Contudo, reconheço, por vezes, aflora um "look" algo contrastante, assumindo explicitamente um tom mais feminino no seu trajar, com umas saias justas que deixam entrever, quando sentada, extensões inesperadas, e por isso tentadoras, a par de decotes, mais sugestivos do que efectivos, é certo, mas que deixam o espaço a algum colar de bom gosto e uma imagem global de inegável "glamour" feminino. Por isso, lhe chamei já "Barbie do Alabama". Alabama por razões óbvias. Barbie por essa sensualidade fria, artificial, de plástico, que é a marca inconfundível dessas bonecas. Mas, mesmo quando na sua faceta mais Barbie, Condi mantém o seu discurso uniforme, monocórdico, burocrático.
Mas eis que surge a revelação: Condi apaixonou-se. Por um político, como não podia deixar de ser, e logo por um "homólogo", o do Canadá, que é o que está mais à mão. Imagino como terá sido a declaração de amor, se a houve, e se foi no seu habitual discurso de estadista.
Mas, quem sabe?... Será Condi, a autêntica, aquela que se apresenta em público? Ou será, no fundo, uma perversa contida? Uma perversa à beira da ruptura, da libertação? Aguardemos.

 

Ocidente e terrorismo

Vasco Pulido Valente (aliás só Valente, que não Pulido) diz hoje no Público muito acertadamente que a ideia de o "Ocidente" promover a democracia no mundo é uma "ideia colonial".
Mas conclui erradamente que o que o "Ocidente" tem a fazer, nas suas relações com o "Islão", é apenas comprar petróleo e vender tecnologia, deixando, no mais, o "Islão" em paz. Digo erradamente, porque esse estado de coisas é também uma relação colonial, ao manter o "Islão" num estado de subdesenvolvimento, apenas como produtor de matérias-primas, e cliente obrigatório da tecnologia do desenvolvido Ocidente", estado de coisas de que o "Islão" pode querer libertar-se.
Claro que não é promovendo a "democracia à americana" (que é a democracia do mercado, em que os democratizados continuam nas mãos dos democratizadores enquanto estes quiserem) que as coisas melhoram.
O mundo só ficará mesmo mais tranquilo quando o colonialismo, o explícito e o disfarçado, que é o que predomina hoje, desaparecer.

 

Uma história de amor

Anteontem , depois do telejornal das 20 h, a RTP1 transmitiu uma curta reportagem sobre uma história de amor entre dois reclusos, ambos condenados por homicídio qualificado a mais de 20 anos de prisão. Uma história simples: ele conheceu-a através da televisão, num programa sobre prisões em que ela participava. Escreveu-lhe, mas ela não respondeu à primeira. Ele insistiu e ela acabou por responder. Cada um contou a sua história. Iniciaram um "namoro" por correspondência e acabaram por casar há seis anos. A partir daí tiveram direito a "visitas íntimas" mensais. Foi como se o paraíso desabasse dentro das grades. A humanidade de um corpo real e terno ao alcance, embora por curta duração (3 horas), depois de anos e anos de privação sexual e afectiva. O renascimento de sentimentos calcados e recalcados (talvez definitivamente) pela dureza e embrutecimento do dia-a-dia do cárcere. A formulação cautelosa, a medo, de projectos de vida para "depois", quando "um dia" saírem (presumivelmente ele com 62 anos, ela com 50). Dois rostos que nos ficam na retina. Uma história humana, apenas isso. Numa reportagem sóbria, conduzida com emoção contida, assinada por Alberto Serra, um jornalista que se interessa por histórias e casos que não são notícia, protagonizadas por gente que não conta para a agenda mediática.

12 setembro 2006

 

Tortura e coacção

Com esta subtil distinção, o embaixador americano em Lisboa (que sorte tivemos com esta "aquisição") resolve o complicado problema com que Bush se tem defrontado. Afinal a coisa é simples: a tortura, sim, é proibida, mas já não a coacção. E "coacção" tem um campo semântico muito vasto: vai desde "levantar a voz" face a alguém até... bom, até onde ele não disse, mas talvez não seja difícil de adivinhar, atendendo a que o mesmo senhor defende o prosseguimento da estratégia até agora seguida e anuncia mesmo (para que fique claro) que as prisões secretas vão continuar e nos mesmos locais e que os nomes dos detidos só serão revelados quando assim o entenderem os captores.
Depois de tudo isto parece que teremos de reconhecer que os "métodos" outrora utilizados pela PIDE se enquadrariam perfeitamente no conceito de "coacção". Tanto protesto, tanta acusação de "torturas" para afinal nos virem agora dizer que tudo aquilo é admissível e legítimo. Quando praticado pelo Império do Bem, evidentemente.

11 setembro 2006

 

"Comemorando" o 11 de Setenbro de 2001

Como era previsível, o noticiário de hoje tem sido ocupado pelas "comemorações" do 11 de Setembro de 2001. O respeito que é devido pelas vítimas não pode escamotear que outros acontecimentos mais recentes (para não falar dos já remotos bombardeamentos de Hamburgo e de Dresden pelos "aliados" ou de Hiroxima e Nagasaki pelos EUA) foram muito mais devastadores em termos de vidas e bens (Iraque, ex-Jugoslávia, Palestina, Líbano).
A repercussão deste 11 de Setembro (porque houve outros também memoráveis) deve-se naturalmente ao facto de ter ocorrido no coração dos EUA, assim pondo termo a uma sensação de invulnerabilidade do seu território que governantes e governados americanos experimentavam.
Discute-se muito se o mundo mudou irreversivelmente depois dessa data. Quem defende a tese da mudança pretende no fundo é afirmar que o mundo precisa de uma "autoridade" forte, de um "poder central" acima do direito e de quaisquer regras que não sejam a que esse poder dita. Sabemos como se chama esse poder e a que resultados chegou a estratégia que prossegue.
O mundo não precisa de um Leviathan, mas de direito e diplomacia. A estratégia da "guerra ao terrorismo" (como se "terrorismo" fosse uma entidade ontologicamente unificada, um ser identificável ou individualizável, a encarnação do "mal") é um desastre humanitário e mesmo militar. Quantas vidas serão ainda precisas (vidas dos vários mundos hierarquizados em que vivemos, ou seja, do primeiro mundo, as mais preciosas, as dos seus arredores e as dos "estados párias") para fazer inverter o caminho?

09 setembro 2006

 

"Breaking news" na Euronews

Para minha completa surpresa, ontem no noticiário da noite da Euronews passou a notícia do pacto sobre a justiça em Portugal, com direito a imagens mostrando a assinatura, focando depois o ministro Alberto Costa, cujo nome foi citado. Não percebi nada do que o jornalista disse, mas a notícia é indubitavelmente uma honra para todos nós, portugueses. Não é todos os dias que Portugal e os seus ministros aparecem nos noticiários internacionais. Quem sabe se este pacto não estará destinado a ser um farol na Europa judiciária (e Alberto Costa o faroleiro)?

 

A confissão de Bush

Confessou tudo: as prisões secretas da CIA; os voos secretos para Guantánamo de "combatentes ilegais"; o recurso à tortura nos interrogatórios ("procedimentos alternativos"). Reconheceu tudo o que até agora tinha negado. Ninguém se espantou. Já se sabia que tudo aquilo era verdade. E já se sabia também que a mentira passou a ser moeda corrente na Casa Branca.
Simultaneamente foi divulgado um novo manual de tortura, ou melhor, um novo manual sobre o tratamento de prisioneiros, que vem "limitar" os métodos de interrogatório. Mas atenção: este manual é apenas para o Pentágono, isto é, para as forças armadas, não para a CIA, e muito menos para os seguranças contratados pela CIA ("outsourcing" investigativo).
Entretanto, todos os "combatentes ilegais" continuam sem conhecer o seu destino: como vão ser julgados? por que "tribunais"? com que regras?
Tudo isto parece um "thriller" de mau gosto. Mas não é. É a realidade. E, não nos esqueçamos, é para nosso bem, porque nos protege dos "terroristas". Temos de estar agradecidos.

 

"Breaking news" na justiça

É uma autêntica "breaking new" (ou "bomb new") este "pacto" assinado pelo governo e pelo PSD para a área da justiça (depois de sistematicamente rejeitado pelo Governo ao longo da sua vigência).
A encenação foi gradiosa: uma cerimónia solene de assinatura no cenário majestoso da AR, pelos presidentes dos grupos parlamentares, de uma quantidade enorme de papéis que mais pareciam um tratado de armistício entre ex-beligerantes, assinatura selada no dia seguinte pelo PM e presidente do PSD em não menos solene cerimónia em S. Bento, seguida de almoço entre ambos (nada sabemos sobre a digestão). Tudo sempre em directo e integral por todos os canais.
Terminada a festa mediática, direi, para já, o seguinte:
O "pecado original" deste pacto é a sua restrição ao "bloco central". Vício que poderá ainda ser suprido. Veremos qual a flexibilidade dos pactuantes. Há que "ouvir" os outros partidos e também os "parceiros sociais" (chamemos-lhe assim).
A celebração do pacto, em todo o caso, pode abrir perspectivas de "pacificação" e estabilização da justiça. Esperemos para ver.
Essencial é conhecer os pormenores, porque a maioria dos princípios expostos não levantará grande polémica. Muitos são até consensuais e nada originais.
Mas há alguns pontos fulcrais: refiro-me ao recrutamento e formação dos magistrados e ao acesso aos tribunais superiores. Reservo a minha opinião para depois da leitura dos articulados.
Mas gostaria de dizer já o seguinte. Discordo de uma formação separada das duas magistraturas que afaste o MP da cultura judicial que lhe é própria enquanto magistratura; simpatizo com a ideia de prestação de provas públicas para o acesso aos tribunais superiores; e quanto à quota obrigatória para não magistrados no STJ é preciso ver como e por quem serão escolhidos os "juristas de mérito".
Aguardemos melhores informações.

08 setembro 2006

 

«Acordo político-parlamentar...»

O Acordo político-parlamentar para a reforma da justiça celebrado entre o PS e o PSD pode ser consultado aqui, aguarda-se comentários... não sujeitos a segredo de justiça.

06 setembro 2006

 

Gralhas

Agora que tanto se fala do anteprojecto de revisão do Código de Processo Penal e como não quero ficar a leste, decidi ler o pensamento do legislador himself. Peguei, então, num dos livros que publica as conferências do Congresso de Processo Penal que teve lugar em Lisboa, nos dias 24 e 25 de Março, mais concretamente, no II Volume e propus-me a leitura do texto da conferência proferida pelo Dr. Rui Pereira, subordinada ao tema A Reforma do Processo Penal.
Na pág. 227 deparei-me com a seguinte interrogação do seu autor:


"Senhores do inquérito, nestes casos (de delegação genérica), não serão, afinal, os órgãos de política criminal?"

Gralhas...

 

Reforma do Código Penal ou Roteiro do Politicamente Correcto?



Sei bem que ao escrever estas modestas linhas devo fazê-lo com pezinhos de lã. Todos os cuidados são poucos, se não quiser ser agravado como reaccionário, sexista ou até coisas bem piores.
Vem isto a propósito da proposta que consta do Anteprojecto de Reforma do Código Penal, apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, que a meu ver, tal como se indica em título a este postal, consagra soluções criminalizadoras que traduzem um modo de pensar com a marca de água do “politicamente correcto”, coisa tão mais lamentável quanto como modo de alcançar os prosseguidos fins de emancipação se usa, precisamente, o instrumento que – não sem alguma ingenuidade – se considera “de última linha”: o direito penal. Vale por dizer, a, assim chamada, affirmative action que é apanágio do pensamento politicamente correcto é concretizada, aqui, pelo meio mais agressivo que a comunidade político-juridicamente organizada conhece: a criminalização (ou alargamento de criminalizações preexistentes, tanto monta) das condutas que na visão monolítica dos designados (pelos estudiosos da política criminal) “gestores atípicos da moral colectiva” (ecologistas, feministas, homossexuais, pacifistas, de entre outros) são susceptíveis de constituir entrave ao programa ideológico que estabeleceram para todos nós.
As associações feministas reclamavam um sexual harrassment à americana? Recauchuta-se o crime de exibicionismo e dá-se-lhes um crime de “importunação sexual” (artigo 170.º, do ARCP). Queriam punição mais gravosa e autónoma dos maus-tratos sobre o ex-cônjuge? Foram brindadas com o artigo o crime de “violência doméstica” (artigo 152.º, n.º 1, al. a), parte final, do ARCP), que permite punir com especial gravidade altercação entre ex-cônjuges ocorrida após as bodas de prata do divórcio. Preocupava-as putativa complacência dos tribunais na condenação de uxoricídios? Consagra-se o homicídio do cônjuge como causa qualificativa do homicídio (artigo 132.º, n.º 2, al. b), do ARCP), desprezando a evidência sociológica de que, goste-se ou não, o espaço conjugal é campo fértil para o privilegiamento. Subsiste a discriminação sexista? No problem, o Direito Penal entra em cena e em força e equipara-as à discriminação racial e religiosa (artigo 240.º, do ARCP), restando apenas saber o que pretende o MP fazer em relação a algumas encíclicas da Igreja Católica… As associações homossexuais estavam preocupadas com as infrutíferas tentativas de ver reconhecido como centro autónomo de relações jurídicas conjugais a união entre duas pessoas do mesmo sexo? O legislador civil está renitente? Não faz mal, a coisa entra pela janela (cada vez mais) escancarada do Direito Penal e reconhece-se tal comunidade conjugal como merecedora de tutela autónoma, sublinho autónoma (são os tais cuidados que é preciso ter para contrariar os politicamente correctos, que nos leva a ser, de certo modo, …politicamente correctos), para efeitos de violência doméstica e de qualificação do homicídio (artigos 152.º, n.º 1, al. b), e 132.º, n.º 2, al. b), do ARCP), ignorando-se, ainda aqui, não apenas que o substrato sociológico da incriminação da violência doméstica traduz, quase sem excepção, situação em que um dos cônjuges (leia-se: o homem) é fisicamente mais forte do que o outro (leia-se: a mulher), como também o facto de o Direito Penal só dever reconhecer como objecto (e também formas) de tutela situações em relação às quais existe amplo consenso social.
Neste ponto, não fosse eu criatura insignificante, já estaria a ser vituperado por toda a sorte de pós-modernos, alguns deles (os mais brandos e contidos) perguntariam: mas Pedro, a lei não distingue, para efeitos das novas incriminações, entre género (outro termo “politicamente correcto”) masculino e feminino, bem podendo ser vítima da tal violência doméstica ou do homicídio qualificado o cônjuge do sexo (que é assim que se designa) masculino. Porquê, então, todo esse prurido? E eu respondo: não distingue e nem podia distinguir porque a lei vale para todas as pessoas e não é preciso ser politicamente correcto para chegar a tal conclusão. O que sucede é que, efectivamente, ela é feita não por causa ou a pensar em todas as pessoas. Ela é feita por causa de certos grupos de pessoas (os tais “gestores atípicos da moral colectiva”), que como timoneiros nos ensinam – ou pretendem ensinar – como devemos ver a mulher, o homossexual, o pacifista o ecologista, etc., e sempre com a ameaça de que ao mais leve “desequilíbrio”, ao mais ténue sinal de conduta desviante, arcarmos com os rigores da sanção penal. Ao que acresce, como está bom de ver, que nem por as referidas alterações passarem (como certamente passarão) da proposta à vigência as mulheres ou os homossexuais estarão mais protegidos, pela simples razão de que a lei – e mesmo a lei penal – já os protege suficientemente (leia-se: como outra pessoa qualquer, que não seja mulher ou homossexual). Num tal contexto, as alterações propostas têm o inequívoco sabor de bandeiras emancipatórias cravadas no cada vez mais tenro terreno da lei penal.
E chegado aqui impõe-se-me provar a minha “inocência”. Há bem pouco tempo, em artigo de opinião (“O burro de Orwell”, Atlântico, 2, Ag. 2006, p. 29), João Pedro Marques avisava: “Sendo um discurso e uma prática a favor de gente que é ou foi vítima, que é ou foi marginalizada, brutalizada, injustiçada, enganada, gente que está em minoria ou numa posição de inferioridade, o politicamente correcto tem, manifestamente, a virtude do seu lado. Qualquer crítica que se lhe faça pode dar a sensação – que aliás, os seus promotores imediatamente exploram – de que se está contra essa gente.” Por isso, o politicamente correcto, na alvura da sua bondade, tem esta implicação singela mas pesada: impõe uma inversão do ónus da prova. Não se pode criticá-lo sem ao menos se jurar a pés juntos que também se é bom e que nos move a melhor das intenções. E, portanto: garanto que não sou sexista, belicista, antiecologista ou outras coisas em relação às quais se imponha ou não se imponha ser “anti”. Mas antes de tudo, sou um amante da liberdade de pensamento, de expressão e, porque não o dizer, até onde for possível, dos actos. E, como tal, dispenso que o Estado tutele a minha consciência e me indique o caminho.
E por falar em caminho, não me parece ser o de um direito penal liberal o percorrido por legislador que avalize muito do que vem proposto no ARCP.

05 setembro 2006

 

Suficiência ou prevalência do processo penal - um comentário

Na sequência do postal anterior (que acabei de rever) coloquei um postal no Cum Grano Salis sobre suficiência v. prevalência do processo penal.

04 setembro 2006

 

Diálogo sobre o anteprojecto de revisão do Código de Processo Penal

No Cum Grano Salis (onde tenho sido ainda mais relapso do que no Sine Die), José António Barreiros assumiu a iniciativa cívica de propor uma conversa «blogosférica» sobre o anteprojecto de revisão do CPP aqui e deu-lhe sequência (1; 2; 3; 4) no que foi acompanhado por ALM (com um postal que faz jus ao eucalipto a que se referiu na sua metáfora, na linha de um outro postal sobre um aspecto que devia ser ponderado numa reforma do processo penal: Intercepção de comunicações electrónicas e o CPPenal).

Tal como a outros (no Incursões e no dizpositivo), parece-me que seria salutar que um diálogo profícuo ultrapassasse os limites estritos de cada blogue.
Eu vou tentar participar.

PS- O Pedro Soares Albergaria já participou aqui.

(Revisto)

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