04 julho 2006

 

«Fast track»: a nulificação da Justiça


97,1%. É esta, de acordo com os últimos (2003) números disponibilizados pelo excelente Sourcebook of Criminal Justice Statistics Online (tabela 5.34), a percentagem assombrosa das condenações que, ao nível federal, nos E. U. A., resultaram de declarações de culpa, estas obtidas, como se sabe, na sequência de negociação. No que respeita a certos crimes, todas as condenações resultaram de negociação.
A imagem (em que a cinematografia norte-americana ainda insiste tanto) de dois contendores em frenética defesa do seu “caso” perante um painel de 12 cidadãos jaz definitivamente no sótão das antiguidades judiciárias. O modelo “adversary” – ou o modelo “Perry Mason”, como alguém, caricaturando-o, o chamou –, se alguma vez existiu, desapareceu de todo. Hoje, já ninguém é julgado na América (pronto, é um exagero: 2,9% dos condenados foram julgados): ou não se é acusado ou se é tão só sujeito a pena. Ou, pior ainda, agora é possível não ser formalmente acusado (ao menos sob controlo do grand jury), não ser julgado e ainda assim ser condenado em pena!
Refiro-me aos chamados early disposition programs (vulgo, fast track programs). O conceito é simples, como se espera das coisas eficientes: o arguido prescinde de tudo – da formalização da acusação em indictment, de conhecer os meios probatórios do MP, dos relatórios para determinação de pena, do direito ao recurso –, declara-se culpado logo na primeira audiência posterior à detenção (initial appearance) e consente na aplicação imediata da pena; em troca, literalmente em troca, o MP acorda em recomendar ao juiz uma pena atenuada até 4 “níveis” abaixo da prevista nas Fed. Sent. Guid.; o juiz, por seu turno, como um diligente notário, aplica a pena.
É claro que esta espécie bargaining elevada à quinta casa não é para todos. Ela surgiu nos anos 90 do séc. passado e aplica-se, apenas, em alguns estados e tão só onde ocorra aprovação do Attorney General ou do U. S. District Attorney com competência na área do tribunal competente para aplicar a pena. Esses estados são os que fazem fronteira com o México (Texas, Arizona, Novo México, Califórnia) e, como está bom de ver, isso ocorre em função de uma circunstância excepcional: a massificação da criminalidade relacionada com a droga e com emigração ilegal naquela fronteira, por onde entram, por ano, quase 1000000 de emigrantes ilegais. Posto isto, logo ensaiarão alguns que a medida está justificada: não se pode combater uma infecção com aspirinas.
A questão, mais uma vez, não está nos fins. Está nos meios ou na proporção deles. E, em termos muito enxutos, aqueles instrumentos processuais não só introduzem, de direito, um elemento de desigualdade na aplicação da lei penal (aplicação discriminatória dela dentro do território nacional ou até mesmo dentro do território do respectivo Estado da União), como, de facto, estão dirigidos ao controlo social, através do aparelho repressivo do Estado, de uma específica etnia. A isso acresce, em função da nulificação das garantias de defesa do arguido, que a condenação de inocentes não é, longe disso, coisa que se possa ter por remota. Por último, tratando-se do último grito da moda em matéria de negociação da declaração de culpa, os fast track programs tendem, como acontece com tudo o que está na moda, ultrapassada a fase da exclusividade, a “democratizar-se” no seu uso. Não são poucos os observadores que já veicularam esse receio.
Trata-se, pois, daquela tecnologia processual penal que me faz pensar na utilidade primeira do estudo de experiências estrangeiras: não é a de encontrar aquilo que queremos. Bem antes disso, do que se trata é de saber o que não queremos.





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