06 junho 2006

 

O haxixe e o bom Bracolletti

Meti o carro por aí acima em busca de um refúgio, passei a fronteira que já não é fronteira, olhei de esguelha, pela janela, a faiscante Ria de Vigo e só me detive lá mais para diante nas apaziguadoras baías das Rias Bajas. Estava farto de processos, de tráficos de droga, de crimes de abuso sexual, de correios electrónicos com mensagens profissionais, de noitadas a ponderar penas. Levei livros, livros, livros… para ler à sombra, rodeado por tantas águas, nas horas de canícula, e estancar tanta sede de letra impressa, que não a letra entediante decalcada em formas computorizadas de sentenças, acórdãos, motivações de recurso.
Levei Eça, claro! o eterno e universal Eça de Queirós. Eterno e universal até no sentido que Cardoso Pires denunciava como sendo o escritor que todas as «elites» nacionais pretensamente cultas e provincianas estão sempre prontas a citar e a admirar com infinita dose de «charme».
Levei Eça, entre outros, e reli os «Contos», ou uma porção deles. Já os li e reli muitas vezes, mas os «textos» (os bons «textos» literários) são para ler muitas e muitas vezes. A leitura de um «texto» é inesgotável. Por isso é que ainda somos capazes de ler os «textos» da Antiguidade Clássica e deles extrair prazer. A propósito, lembram-se de como o Jacinto d’«A Cidade e as Serras», tendo começado a criar empatia com a «incivilizada» Tormes, lia Homero na enxerga do seu rude quarto e emitia de vez em quando uma gargalhada sonora que ecoava pela imensidão dos salões vazios, ao sensibilizar-se com o humor de tal ou qual passagem da «Odisseia»?
Pois bem. Nenhuma leitura esgota uma obra, sendo através de cada leitura que ela se reactualiza constantemente. E também sucede que a relevância que damos em certo momento a determinadas factos confere aos «textos» uma inesperada vitalidade. É o caso, por exemplo, do rejuvenescido interesse pelo referido romance «A Cidade e as Serras», devido à importância que a ecologia adquiriu no nosso tempo.
Durante muito tempo, reli o prefácio das «Prosas Bárbaras», de que particularmente gosto, sem nunca ter atentado numa certa passagem em que Batalha Reis, o autor de tal prefácio, referindo-se ao entusiasmo de Eça por uma certa substância que trouxe do Médio Oriente, a certa altura diz: «Analisou, minuciosamente, as sensações que lhe dera, no Cairo, o uso do haxixe, e as visões fantásticas que nos preparava – porque ele e o Conde de Resende haviam-nos trazido haxixe misturado a geleia, a bolos e a pastilhas que se fumavam nuns cachimbos especiais.»
Foi a relevância moderna conferida aos estupefacientes e a minha experiência na área da repressão da disseminação desses produtos que me fez ver com olhos não inocentes, porventura até euforicamente escandalizados, esse fantástico interesse de Eça – imaginem! Eça de Queirós! – pelo haxixe.
Agora, neste fim de semana, foi a releitura dum conto - «Um poeta lírico» - que fez nascer para mim uma personagem que até aí eu ignorara: Bracolletti. O que tem de particular este Bracolletti? Uma debilidade, como diz Eça: «É singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos: gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Colecciona-as pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhe a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem, e quando alguma, excitada de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuria, o arrepela, baba obscenidades, - o bom Bracolletti encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa síria:
Piccolina! Gentilleta!»
Enfim, foi preciso ter passado pelas Casas Pias, por todo este alarido à volta dos crimes sexuais e pela hipersensibilidade social a este tipo de crimes, com reflexos na minha prática profissional, para descobrir este verdadeiro estupor, que é «o bom Bracolletti».





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