02 maio 2006

 

Uma imagem que se impõe alterar

Os tribunais e sobretudo o Supremo Tribunal de Justiça têm sido alvo da atenção dos «media» pelas piores razões. Normalmente a comunicação social anda à caça de qualquer «deslize», de qualquer saliência que se destaque de uma certa forma de pensar ou sentir tidas em certo momento e em certos meios como correctas, de um comportamento mais anódino, em suma, de um qualquer acidente anedótico, para transmitirem a «mensagem» da crise da justiça. Esse é o estereótipo que interessa explorar em termos de comunicação, porque ela, sim, é a notícia. O contrário disso, aquilo que poderia transmitir uma imagem da justiça (ou, digamos, de certas facetas dela) antagónica do estereótipo da «crise» não é noticiável. Pura e simplesmente não existe. A justiça está em crise, eis o axioma, a verdade que faz render. O que é preciso é demonstrar isso constantemente, a todo o custo, farejando tudo o que possa contribuir para essa imagem e, frequentemente, deturpando, pelo empolamento ou pela distorção, a verdade singela dos factos.
Em relação ao Supremo Tribunal de Justiça, a realidade que se pretende montar é a de uma instituição cavernícola, constituída por gente retrógrada, anciãos com ferrugem no cérebro, vivendo completamente fora do tempo e alimentando ideias pavorosas. Ainda recentemente se viu isso a propósito da decisão das «palmadas paternais no rabo». A comunicação social explorou algumas frases da decisão até à medula, de uma forma sensacionalista e completamente desproporcionada. Por sobre a realidade de algumas afirmações polémicas, criou um facto jornalístico daqueles que causam furor, e pôs todo o mundo a falar desse facto. Como é costume nestas coisas, a maior parte das pessoas nem sabia verdadeiramente do que falava, porque o facto que passa a relevar não é o que deu origem à notícia, mas o que foi criado com a notícia. Tem sido sempre assim. Às tantas, para uma grande parte das pessoas, o que tinha sucedido é que o Supremo Tribunal tinha absolvido a arguida de crimes de maus tratos. Uma grosseiríssima falsificação.
Uma professora universitária, por exemplo, veio também à liça sem conhecer a decisão (ainda ao menos, que o disse) e, demonstrando um completo analfabetismo nestas coisas, chamou por várias vezes «acordo» à decisão colegial dos juízes, que toda a gente que leia jornais e veja televisão sabe que se chama «acórdão». Um completo desaforo.
E depois, atrás destes incidentes, vem sempre a ladaínha das decisões do Supremo que dão a imagem da sua decadência ancestral, desde a velhíssima decisão do «macho ibérico» que todo o bicho-careta cita de cor, até à da «sopa esturricada», que é uma falsificação descarada do acórdão que o Supremo produziu. Mas vale tudo nesta campanha de mistificação. Criado o facto jornalístico, toda a gente (incluindo intelectuais de «reconhecido mérito») se acham no direito de vir a terreiro criticar, dispensando-se de as lerem, as decisões «abnormes» do mais alto tribunal do país, prova suprema do descalabro da nossa justiça.
Ora, tudo o que saia deste universo catastrófico, que faz as delícias do sensacionalismo jornalístico, não tem dignidade para ser trazido à luz do dia. Maia Costa, num dos seus últimos textos publicados neste blogue dá conta desses «buracos negros» a propósito da recente tomada de posse do vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Um acontecimento que mereceria ter sido objecto da atenção dos «media», se os «media» não estivessem interessados em darem relevo apenas à imagem estereotipada que querem transmitir. Não só o acontecimento o merecia, como o discurso do empossado, o Dr. Henriques Gaspar, agora também publicado neste blogue, teria mostrado que o Supremo Tribunal não está tão caduco como os «media» querem fazer crer. A imagem real não é tão monolítica, como a que os «media», com a sua tendência para a homogeneização, tentam impor com notável esforço. O curioso é que os «media», muitas vezes, em algumas críticas que fazem a decisões do Supremo e de outros tribunais (por exemplo, quando dão eco às tendências mais retrógradas de certos sectores da sociedade em matéria de penas) dão de si uma imagem ainda mais anquilosada do que a das instituições que criticam. E sistematicamente silenciam o que de mais inovador se vai fazendo, porque, quer queiram, quer não, também se produzem coisas, fora do ruído vácuo, que prestigiam os tribunais. Diga-se, porém, que estes ainda não encontraram (e a culpa é, nesse aspecto, toda deles) uma forma autónoma de trazerem à luz do dia tanto do que, no silêncio dos gabinetes e no labor anónimo do dia-a-dia, se vai produzindo com interesse e que merecia ser conhecido do público. Talvez o novo vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que deu mostras de uma lucidez ímpar, como, aliás já se lhe conhecia e por isso foi que os seus colegas o elegeram para o lugar, possa dar um contributo decisivo para uma alteração das coisas em matéria de comunicação.





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