05 março 2006

 

Sabina Freire (1905), de Manuel Teixeira-Gomes

Acto II, cena XII
(…)
SABINA: Ah! Se o teu amor fosse sincero, verdadeiro, incondicional!... Se nascesse das entranhas, se te varresse da memória todas as afeições, todos os preconceitos, todas as influências..., se fosse exclusivo, indispensável, absorvente...
JÚLIO: É tudo isso...; é muito mais... Juro-te... juro-te...
SABINA: Ah!... Se assim fosse e se a tua razão se iluminasse e exigindo a supressão daquele obstáculo; se a tua inteligência se abrisse à radiante perspectiva da liberdade, do infindo, incalculável gozo de caminharmos pela existência fora como duas criaturas divinas, espalhando benefícios, socorrendo infortúnios, aliviando misérias, fomentando a ideia do belo, do justo; se obedecendo ao teu amor tu tomasses a resolução inabalável de me seguir ainda quando eu te levasse pela senda do crime; se tivesses ânimo para jurar: o que fizeres, Sabina, é bem feito...
JÚLIO: Juro, juro pelo amor que te tenho...
SABINA: É um crime como a sociedade o julga, mas a sociedade seria a primeira a fruir as úteis consequências do que ela assim chama... Às consciências dos fortes, às almas diamantinas que resplandecem acima da mesquinhez das convenções miseráveis, ele impôr-se-ia como um acto de suprema justiça.
JÚLIO: Que acto..., diz já...
SABINA: E não te figures que correríamos o menor risco, nem que lhe causaríamos sofrimento... Pouco antes de morrer, meu pai que era um alemão ideólogo e fantástico, espécie de alquimista sonhando o niilismo platónico, deu-me a cadeia de oiro com os dois frascos que me acompanham sempre e te inspiram tanta curiosidade, obrigando-me a prometer que nunca me desfaria de corrente sem primeiro empregar o conteúdo de algum dos frascos. E acrescentou: nada mais precioso possuo, minha filha, do que esta corrente; num dos frascos encontrarás a morte fulminante: é a libertação; o outro contém a morte lenta: é a vingança... Um desses frascos está com efeito cheio de ácido cianídrico; duas gotas bastarão para que a tua mãe desapareça sem dor nem agonia... E que médico haverá capaz de suspeitar de envenenamento a morte repentina que tão bem imita a apoplexia?...
JÚLIO: Matar a minha mãe!... Sabina!...
SABINA: A tua mãe!... O nosso carrasco, queres tu dizer... Mas quem a matava era eu...
JÚLIO (levantando-se arrebatadamente): Sabina!...
SABINA (que também se levanta e o fixa de frente estendendo-lhe as mãos): Então, o que tens?...
JÚLIO (recuando): Não me toques!... Sinto a impressão de ver levantar-se-me debaixo dos pés uma víbora...
SABINA: Júlio, deixa-te de farsas...
JÚLIO: Não, mulher, não é farsa, é uma sufocação de horror, é um pasmo de te haver escutado tanto tempo sem te pressentir a infâmia, é uma alucinação, um remoinho infernal, é a demência...
SABINA: Pobre Júlio!
JÚLIO: Eu não quero inspirar piedade, mulher..., pois tu não avalias o que há de abominável no teu projecto, pois tu não sabes que à mais abjecta das mães o filho está ligado pelo dever e pelo sangue...
SABINA: Entras no melodrama...
JÚLIO: Entro na tragédia ignóbil... Ah! Ninguém pode imaginar quanto eu sofro... Meu Deus, meu Deus!... (Cai no sofá e esconde o rosto nas mãos).
SABINA: Pobre Júlio... (Impetuosa e colérica) Desgraçado insignificante... Coração de trapos, alma indigna da minha... Como foi possível que eu te aceitasse por companheiro, a ti criatura vil, e inerte e mole e pegajosa...





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