16 março 2006

 

Roda-livre

No princípio, era o Ministério Público. O Ministério Público é que tem o poder de iniciativa e, portanto, tudo estava em condicionar esse poder, criar um mecanismo de responsabilização que mitigasse (ou mesmo suprimisse de vez, segundo os desejos explícitos ou implícitos de alguns) a autonomia do Ministério Público. Este não podia andar em «roda-livre», e ele tem andado em «roda-livre». Uma ideia que foi sendo sistematicamente martelada até se tornar praticamente evidente. O Ministério Público tinha que ser responsabilizado, e essa responsabilização só lhe podia advir da sua subordinação ao poder político democrático, ou seja, para a maior parte dos pregadores da teoria da «roda-livre», ao Poder Executivo. Lá os juízes serem independentes, isso sim. Os juízes sempre foram independentes. Nem outra coisa se podia conceber. Aliás, não tendo poder de iniciativa, mas um poder condicionado à resolução de questões suscitadas e conformadas, inicial e sucessivamente, nas várias fases do processo, por quem tem legalmente aquele poder de iniciativa, a independência dos juízes não mete tanto medo como isso.
O certo é que o tempo foi decorrendo, saiu o governo meteórico de Santana Lopes, que, no domínio da justiça não foi tão mau como isso, entrou o governo maioritário de Sócrates, e este quis tomar para si a audácia de uma «profunda» reforma na justiça, apropriando-se, como se fossem suas, de algumas ideias que vinham de trás, e tentando inovar aqui e ali, o mais das vezes de forma atrabiliária, ao jeito populista, seguindo os tais consensos generalizados de ordinário veiculados pela comunicação social, nalguns casos parecendo mesmo querer enveredar por soluções que tinham uma motivação muito própria. Dentro dessa estratégia (nome pomposo!), o Ministério Público vai ser responsabilizado pela execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, não interessando agora em que termos. Ou seja, vai dar-se início ao princípio do fim da «roda-livre» em que tem girado o Ministério Público. Isto com geral aplauso e particular ênfase de alguns opinadores como Sousa Tavares, que é um «desencantado» da autonomia do Ministério Público, a qual começou por defender, segundo não se cansa se dizer, de alma e coração, defendendo agora exactamente o contrário dessa autonomia, por causa dos desastres a que terá conduzido.
Pois bem! Parecendo estar em vias de solução (um começo de solução) o problema da roda-livre do Ministério Público (e aqui não ponho em causa, em tese, a bondade da definição de uma política criminal por quem de direito, que não o Ministério Público), a linguagem dos críticos do deplorável sistema de justiça, para cuja demolição se têm empregado todos os esforços (bem intencionados ou mal intencionados, não interessa; o que interessa é que se têm empregado todos os esforços), entrou ela mesma em derrapagem (talvez em roda-livre) e já se começou a falar (não sei se têm topado) na roda-livre em que tem andado a justiça. Já não é, portanto, o Ministério Público, essa entidade que tem poder de iniciativa, mas a justiça no seu todo – o poder judicial – que anda em roda-livre. É bem certo que devagar se vai ao longe e que, talvez para pôr um travão nessa carreira desabrida da justiça, já se adiantam sem rebuço soluções como a de controlar actos jurisdicionais através de comissões ditas independentes. Comissões independentes para fiscalizarem actos de órgãos de soberania independentes! Num país que, de original, não tem nada, salvo, como diz o filósofo José Gil, o nevoeiro, não só a Norte do Cabo da Roca, mas como elemento climático generalizado, é caso para dizer que anda tudo em roda-livre, atropelando-se debaixo desse tal nevoeiro, sob o império sólido da asneira.





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