04 março 2006

 

Monstruosa indigência de espírito

O caso do transexual assassinado por um grupo de miúdos, só um deles penalmente imputável, levantou uma vaga de indignação e de interrogações de diversa ordem. A comoção pública é natural, porque o crime é macabro. Mas talvez o mais interessante seja a reacção de certas cabeças pensantes, das quais eu seleccionaria a de Esther Mucznik (no Público de hoje), que sintetiza de forma notável o novo pensamento dominante, nestes tempos de desgraça intelectual, e não só.
Revolta-se ela contra o facto de, no seu entender, não se fazer distinção entre carrascos e vítimas, de todos serem catalogados como vítimas, ainda quando agressores. E condói-se (e esta é a parte mais compungente) com os que detêm o poder, porque esses não têm desculpa ou compreensão por parte de ninguém! Os demais podem fazer tudo o que há de pior que os seus actos sempre serão explicados e justificados. E insurge-se contra o legado do "materialismo marxista" que responsabiliza sempre os poderosos e desculpa os sem-poder (adorável este sentimento de solidariedade com o poder, sempre tão mal compreendido!).
É sempre triste e confrangedor ler declarações de renegados. Mas, como é possível chegar a este mísero nível de análise? O mundo divide-se apenas entre bons e maus? Os bons são sempre bons e os maus sempre maus? Os actos humanos não podem (e devem) ser apreciados na globalidade e complexidade do seu contexto? Os actos humanos não são sempre complexos? Para que servem as ciências, as ciências humanas, o acervo imenso de conhecimentos acumulados ao longo de séculos? Para agora voltarmos a dizer que os maus são maus e não há nada a fazer senão puni-los? Tudo o que a sociedade humana conquistou em termos de conhecimentos e de garantias fundamentais é para mandar para as urtigas? Agora há apenas o catecismo do bem e do mal, da recompensa e do castigo (do céu e do inferno)? É um Estado punitivo, um Estado penitenciário, a nova Idade do Ouro sonhada por estes profetas?





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