19 março 2006

 

Carta a um político de mui nobre estirpe

com a mais viva concordância relativamente a uma proposta de foro especial para os dignos representantes do Poder do nosso pequeno e nobre Reino

Senhor:
Pediu-me V.ª S.ª um conselho sobre a forma mais prática e, por assim dizer, maximamente discreta, de fazer julgar os dignos representantes dos órgãos do Poder do nosso pequeno Reino, quando, prevaricando em funções ou fora delas, tenham o azar de ser descobertos e, como consequência, venham a ser alvo de processo crime, que, como se sabe, nos tempos que correm, vem logo a ser trombeteado nos meios de comunicação social, principalmente aqueles que não são afectos ao governo, porque sempre os há, não obstante as medidas que se possam sabiamente tomar, desde a oferta de certos lugares de relevo a jornalistas de todas as tendências até à introdução de melhorias profissionais que se possam estender a toda a classe jornalística, em ordem a reduzir o sensacionalismo da imprensa à volta desses casos.
É deveras compreensível a preocupação com tais casos, dada a frequência com que certas personalidades vêm a ser envolvidas em situações que não só as desacreditam a elas próprias, como principalmente as instituições que representam e, por repercussão, enlameiam o bom nome do nosso Reino, se bem que os outros Reinos nossos vizinhos, de hábitos democráticos mais sólidos e com outra reputação no seio das Nações, nos tenham fornecido nos últimos tempos abundantes exemplos de escândalos que embaciam o brilho das respectivas classes políticas e empanam a aura desses Reinos. Por via disso é que a classe política tem descido na cotação dos Povos, ao mesmo tempo que as instituições representativas do Poder têm caído em descrédito. Ora, convenhamos que é preciso prestigiar aquela e credibilizar estas. V.ª S.ª manifesta o receio de o Poder vir a cair na rua e de ser alvo de chacota e de vilipêndio por parte de multidões ignaras, como já tem acontecido, e eu gabo-lhe as nobres preocupações que o animam, porque o que está no centro delas é o acendrado amor ao nosso Reino e o enaltecimento dos valores em que se fundou a carta das liberdades que tem regido o destino da grei.
Pois bem! A proposta que V.ª S.ª teve a bondade de submeter ao critério deste pobre homem parece-me estar imbuída de uma refinada sabedoria e de um altíssimo sentido das responsabilidades. Digo-o com a sinceridade de amigo desinteressado que não busca honrarias nem recompensas, extraindo deleite do simples facto de ser um seu humilde criado. Propõe V.ª S.ª que o julgamento dos políticos, ou seja dos que exercem funções aos vários níveis do Poder, quando não possa ser evitado através de oportunos critérios de oportunidade, seja efectuado nas instâncias superiores. Pois nada mais genial do que essa solução.
Com efeito, se é verdade que os políticos cometem deslizes (permita-se-me o eufemismo) e, às vezes, crassos deslizes, também é verdade que servem a «res publica», e essa circunstância deve sobrelevar todas as demais. Como tal, para causas elevadas, tribunais elevados. Este é um princípio que se poderia dizer inscrito na natureza das cousas e das causas. Os tribunais superiores, pelo seu próprio posicionamento espacial, estão situados nas alturas, lá onde não acede o vulgo, ao contrário do que sucede com os tribunais de cá de baixo. Estes estão perto da rua, da confusão, do atropelo, dos gestos ameaçadores, do vozeario da populaça, das carrinhas que transportam os presos, da «tralha» da comunicação social. Lá em cima é outra cousa. Tudo se passa a um nível mais discreto, sem grandes alardes, sem praticamente intromissões de curiosos. A retumbância de certos casos, que muito justamente pode indignar a população, mas ao mesmo tempo pôr em sério risco as instituições, perde grande parte do seu efeito com a deslocação dos julgamentos para os patamares superiores da administração da justiça. Essa é, pois, a solução ideal que concilia o prestígio das instituições com a discrição que deve envolver os julgamentos dos súbditos que escolheram servir o bem público, mas que, por vezes, como qualquer mortal, caem no lodaçal do crime (releve-me, Senhor, esta metáfora tão cansada - «o lodaçal do crime» - mas de momento não vejo outra forma de exprimir a sujidade que o crime representa).
Inquieta-se V.ª S.ª com a questão da igualdade de todos os súbditos, que pode ser ferida com a solução proposta e tendo em vista que o seu partido é contra os privilégios. Não tenha V.ª S.ª tal escrúpulo. A igualdade não é toda igual, perdoe-se-me o paradoxo. Como os privilégios o não são. É que a sociedade não é horizontal; organiza-se por escalões, por estratos, por classes. Ora, o princípio da igualdade só é ferido quando uma solução ultrapassa a medida do razoável dentro de cada escalão ou classe. Não vamos agora pretender um nivelamento generalizado ou uma igualdade igual para todos os súbditos. Essa utopia, que hão-de designar de «igualitária», só surgirá daqui a muitos anos, quando, no seguimento de grandes convulsões sociais e mesmo de revoluções (não me pergunte como tenho este pressentimento) se começar a falar de «socialismo». Mas isso será daqui a muitos anos, quando eu e V.ª S.ª já cá não estivermos para ver.
Guarde-se, pois, V.ª S.ª de cuidados vãos e passe muito bem.

Seu humilde servidor

Jonatham Swift (1665 – 1745)





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