13 fevereiro 2006

 

CONFLITO DE CIVILIZAÇÕES?

Relativamente a um tema que já suscitou outras intervenções no Sine Die, o Pedro Vaz Patto enviou mais um contributo, que agradeço vivamente e que tenho o maior gosto em publicar:

A propósito da recente publicação de caricaturas de Maomé e das reacções de indignação que se seguiram, tem-se levantado de novo a questão do conflito de civilizações. Há mesmo quem tenha dito que estamos perante o exemplo acabado de que este conflito está aí e a ele não se pode escapar. Uma perspectiva assustadora, que faz temer a repetição de situações como esta nas nossas sociedades, onde estão cada vez mais presentes pessoas de religião muçulmana.
Penso, no entanto, que, a este propósito, antes de falar em conflito de civilizações, importa clarificar princípios que se apresentam, às vezes superficialmente, como característicos de cada das civilizações em confronto. Um deles é o da liberdade de expressão e o seu estatuto nas sociedades democráticas. O outro é o da relação entre Islão e violência.
A liberdade de expressão, estrutural numa sociedade livre e democrática, não pode ser absoluta, ao contrário do que se tem dito e do que poderia decorrer de uma concepção individualista e associal da liberdade. Não há liberdades absolutas. A liberdade de expressão há-de compatibilizar-se com as outras liberdades e outros valores constitucionais. A liberdade de cada um há-de compatibilizar-se com a liberdade dos outros.
E também não é verdade que nas nossas sociedades nada exista de sagrado, nada exista digno de um respeito que se imponha à liberdade de criação e de sátira, que nelas nada exista que não possa ser objecto de troça e de escárnio. Um inquérito publicado recentemente (a 9 de Fevereiro) pelo jornal francês La Croix revelava que para uma clara maioria dos franceses não é admissível a sátira que fere sentimentos religiosos, ou, por exemplo, a dignidade de pessoas com deficiência ou de determinada raça.
A liberdade de expressão não impede a tipificação dos crimes de difamação e de injúrias, que atingem o direito à honra e a dignidade dos visados. Também não impede a punição de crimes contra o respeito devido aos símbolos nacionais ou contra o respeito devido aos mortos. Não é obviamente aceitável o desrespeito para com as vítimas do Holocausto, ou de outros massacres ou graves atentados contra os direitos humanos que a História regista.
E também são puníveis, na nossa e noutras legislações penais, atentados contra os sentimentos religiosos. O artigo 252º do Código Penal português pune o ultraje a acto de culto religioso e o artigo 251º do mesmo diploma pune o ultraje por motivo de crença religiosa. Saliente-se que este último artigo pune a ofensa ou escárnio em razão de crença ou função religiosa apenas quando tal se verifique de «forma adequada a perturbar a paz pública». Parece-me criticável esta exigência, pois o respeito pelos sentimentos religiosos de outrem justifica, por si só, a punição e não deveria fazer-se a distinção entre os casos que podem afectar a paz pública (como é, inequivocamente, aquele a que estamos a assistir) e os que não a afectam, porventura porque dizem respeito a uma comunidade religiosa pacífica ou de reduzida expressão numérica. No caso em apreço, as expressões de solidariedade de vários responsáveis políticos para com os muçulmanos ofendidos nos seus sentimentos deveria ter sido anterior, e não posterior, às manifestações de violência e de perturbação da paz pública. Também se criticou o primeiro-ministro espanhol, que exprimiu essa solidariedade num comunicado conjunto com o primeiro-ministro turco, por nunca ter exprimido uma solidariedade semelhante com os católicos atingidos por ultrajes não menos graves ocorridos recentemente em Espanha.
Está em jogo, também aqui, a dignidade das pessoas feridas nos seus sentimentos religiosos (já não, como sucedeu no passado, a defesa da religião, ou de uma religião tida por verdadeira). E, porventura, feridas ainda mais do que o seriam se fosse atingida a sua honra pessoal, ou a honra dos seus familiares mais queridos. E está em jogo, também, a própria liberdade religiosa dessas pessoas. Afirma-se na “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou no credo”, adoptada pela O.N.U. em 1981, que «a religião e o credo constituem, para aquele que os professe, um dos elementos fundamentais da sua concepção de vida e (…) devem ser integralmente respeitados e garantidos».
Dir-se-á que por esta via se pode anular a própria liberdade de expressão, pois haverá sempre alguém que se sinta ofendido com uma qualquer expressão negativa a respeito da religião, ou de uma religião. Mas não é assim. Há critérios objectivos que, tal como permitem distinguir a crítica de comportamentos (que poderá ser admissível e saudável numa sociedade democrática) da ofensa que atinge a própria pessoa, enquanto tal, na sua dignidade, também permitem distinguir a expressão argumentativa de discordância, no âmbito do debate de ideias, em relação a uma qualquer religião (ou a todas), da invectiva ultrajante que fere, ridiculariza ou humilha. Há que distinguir a crítica, típica de sociedades tolerantes, da ofensa e do ultraje, que são uma clara expressão de intolerância.
Podem, pois, os muçulmanos reclamar o respeito que lhes é devido nas sociedades livres e democráticas. Terão de fazê-lo, porém, na observância do quadro legal dessas sociedades, que separa o Estado e a sociedade civil (por isso, não pode um Estado ser responsabilizado pelo que é publicado num jornal), assim como separa o poder executivo e o poder judicial (sendo que é só a este que cabe dirimir este tipo de conflitos). E, sobretudo, que não permitem que a religião possa ser pretexto para manifestações de violência.
Como cristão, não posso deixar de exprimir esta minha convicção: certamente Deus será mais ofendido quando o Seu nome é utilizado para justificar o ódio e a violência do que quando é visado por uma caricatura ultrajante e de mau gosto. Como tem salientado o Papa Bento XVI, é um grave abuso (uma verdadeira blasfémia) usar o nome de Deus, que é Amor (Deus caritas est – foi o título escolhido por este Papa para a sua primeira encíclica), para justificar o ódio, a vingança e a violência. Também a maior parte dos muçulmanos («o verdadeiro Islão» a que se referiu várias vezes João Paulo II) associa Deus à misericórdia, e não ao ódio. Por isso, é compreensível que os muçulmanos se sintam indignados com caricaturas que associam Maomé ao terrorismo. Mas quem exprime essa indignação através da violência cai numa evidente contradição.
Para evitar que, a partir de situações como esta, se desencadeie um conflito de civilizações, devem as sociedades democráticas ocidentais atender aos limites da liberdade de expressão e ao respeito devido aos sentimentos religiosos das pessoas. Mas, por outro lado, devem os responsáveis muçulmanos afirmar com vigor que é abusivo invocar o Islão como justificação para a violência.

Pedro Vaz Patto





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