27 fevereiro 2006

 

A propósito do termo do mandato presidencial, uma nota sobre processo criminal e intervenção política

A propósito do fim do exercício do presidente Jorge Sampaio, Guilherme da Fonseca analisou criticamente a actuação presidencial, nomeadamente, por força dos «episódios do chamado “Envelope 9”» e do «silêncio [...] acerca do “assalto” à redacção de um jornal diário».
Sem desenvolver o tema parece-me que a existência de um elemento comum aos dois eventos, e consequente conexão, não deve iludir uma autonomia jurídico-política entre os mesmos. Pelo que o quadro para uma intervenção presidencial altera-se radicalmente por força disso mesmo.

Se o pedido de esclarecimentos do Presidente da República, tal como a audição na Assembleia da República, decorre da dimensão política do cargo de Procurador-Geral da República (entenda-se ou não que a interrupção do mandato deste corresponde a um «impeachment», a uma ordinária decisão política ou a uma categoria intermédia), já a abertura e desenvolvimento de um concreto processo crime é (deve ser) marcado pelos estritos fins do processo penal. E aí é fundamental preservar a autonomia do sistema judiciário incompatível com ordens, instruções ou solicitações do poder político, competindo o controlo jurídico-constitucional em última instância ao Tribunal Constitucional.

Já a percepção, claramente maioritária na opinião publicada, de que as buscas ao jornal 24 horas e à residência de um jornalista mais não são do que «rusgas» ou «assaltos» violadores do segredo de jornalista e da liberdade de informação suscita outros problemas. O que se me apresenta como perturbador não é sequer a generalização de tais juízos críticos sobre um processo concreto ou determinados actores judiciários conhecidos do público e que estão nas más graças de quem opina, mas o pressuposto de base de que os magistrados intervenientes (que a maioria dos comentadores, tal como este «blogger», desconhece quem sejam) actuam de forma ilegal, violadora da Constituição, movidos por estrito desejo de vingança ou intimidação. O que tem subjacente um juízo global sobre a organização judiciária e seus agentes.

E aqui parece-me que é difícil deixar de pensar que este clima pode ter um considerável potencial intimidatório não dos visados pelas intervenções judiciárias mas das autoridades judiciárias (com paralelismo com o que se passará noutras paragens, mas com a agravante de se operar num Estado de instituições particularmente desprestigiadas). Ou, noutro tom, se felizmente as magistraturas não beneficiam de uma autoritária presunção de infalibilidade (embora continue a parecer-me que é importante definir também em abstracto e não à luz das estritas conveniências imediatas os limites das «verdades processuais»), a generalização de um princípio de desconfiança é muito problemático para o Estado de direito. E se é esse o ponto a que se chegou (ou a onde se quer chegar) é importante começar a pensar numa alternativa (a este modelo e/ou a estes agentes) em termos de sistema constitucional, pois um vazio judiciário de certo que não é desejável para uma réstea de interesse público.

O mandato presidencial de Jorge Sampaio terá sido marcado por uma tentativa de acção (independentemente da avaliação que se faça sobre o mérito da mesma) ainda no quadro procedimental da Constituição, o que obviamente colide com perspectivas mais substancialistas (sejam de esquerda ou de direita), que não se acomodam a tais limitações formais e que não lhe perdoam tal «estrangeirismo» tão pouco adaptado às «nossas tradições».

 

A cruzada contra «bloggers» anónimos

Na blogosfera nacional parece estar em curso uma campanha contra anónimos e pseudónimos liderada pelo cruzado «Antes Morto Que Verde». Dado o previsível sucesso da operação em terras de Portugal contra os infiéis aos seus mandamentos seria importante que o líder de tal feito (bem como os seus corajosos seguidores) passe também a dedicar alguma atenção ao exterior (as cruzadas devem ser universalistas) e dê um mergulho, chapão ou espadeirada no «padrinho» dos «bloggers» anónimos em terras do Tio Sam (até porque tal padrinho tem uma aliança, de certo ímpia, com uma jurista «blogger» anónima, protagonista de uma estória exemplar à luz dos cânones dos nossos puros, já que tal litigante entretanto deixou o seu emprego na grande maçã podre).

 

Paula Rego


Branca de Neve a engolir a maça envenenada
(1995)

 

O lobo mau e o capuchinho vermelho

Era uma vez… 4500 (ou serão 1500 ?!) escolas que vão acabar!
E pronto: já está.
Acaba aqui este conto se for verdade o que dizem por aí.

Claro que, escolas abertas com poucos alunos não fazem sentido, nem são economicamente viáveis, nem úteis para o país. É até uma questão de bom senso.
Mas, fechar sem garantir alternativas adequadas (escolas bem equipadas, com ensino de qualidade, com transporte escolar sem pneus carecas, etc.), também não pode ser…quando também é preciso combater o abandono escolar precoce!
Quem as paga, claro, já se sabe que são os estudantes do Portugal profundo… onde poucos km demoram séculos a percorrer e onde tudo é ainda difícil e complicado!

Essa mania das grandezas dos portugueses (que não passa mesmo de uma mania) “explica” tanto o bom como o mau. Por isso, quando se fala em fechar escolas, abre-se a boca até pelo menos 1.500! (versão do Diário de Notícias de 24/2/2006, sexta feira passada). Se for verdade até custa a acreditar. Algo vai mal no país das estratégias…

Que dizer de tudo isto? Apesar de grandes e boas ideias a verdade é que os nossos horizontes sempre foram limitados e circunscritos. Resta citar artigos, que guardam sonhos…

Segundo o artigo 29 nº 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, o acesso à educação, direito fundamental da criança, deve ser garantido pelos Estados Partes, visando: «a)- promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas na medida das suas potencialidades; b)- inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c)- inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua; d)- preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com as pessoas de origem indígena; e)- promover o respeito da criança pelo meio ambiente».

Em Portugal, o direito à educação é reconhecido constitucionalmente, incumbindo ao Estado (artigo 73 nº 2 CRP) promover «(...) a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva».

A política de juventude deverá ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade (art. 70 nº 2 CRP).

Ou seja, desde há uns anos que o Estado Português se comprometeu a adoptar políticas sociais que protejam os menores, designadamente, através do reconhecimento do direito à educação, sempre com a preocupação da protecção do desenvolvimento da personalidade do jovem.

Porém, no Parecer do Comité das Regiões sobre a «Proposta de decisão do PE e do Conselho que estabelece um programa de acção integrado no domínio da aprendizagem ao longo da vida», adoptado na 58ª reunião plenária de 23 e 24/2/2005, alerta-se que «de acordo com os valores do Eurotast (2001), uma média de 19,6% dos jovens da UE entre os 18 e os 24 anos não estão envolvidos em educação ou formação contínua, e 20% a 30% dos finalistas do ensino secundário não prosseguem a sua educação ou formação, seja profissional seja geral».

E, como é salientado em "Educação e formação para 2010", Relatório intercalar conjunto do Conselho e da Comissão sobre a realização do programa de trabalho pormenorizado relativo ao seguimento dos objectivos dos sistemas de ensino e formação na Europa: «em alguns países, a percentagem de abandono escolar precoce tem vindo a baixar regularmente desde o princípio dos anos 90. É o caso, por exemplo, da Grécia, da França e do Luxemburgo. Na Dinamarca e em Portugal, no entanto, a tendência de redução observada no início dos anos 90 inverteu-se a partir de meados desta mesma década, pelo que a taxa de abandono escolar está próxima da do início dos anos 90».

Qual é a moral a retirar? O melhor é mesmo (baralhando contos…) “cruzar” o lobo mau com a branca de neve… a ver se aparecem os 7 anões … ou então, perante a “autoridade do Estado-pai” (também a despropósito), recordar a “Branca de Neve a engolir a maça envenenada”…

25 fevereiro 2006

 

Nem tudo o que parece é…ainda Frida Kahlo

Quando referi, neste blogue, a exposição de Frida Kahlo pretendi fazer dois tipos de exercícios:
- o primeiro (que se prende com a minha ignorância informática…) era a experiência (autodidacta) de escrever um texto acompanhado de uma imagem;
- o segundo era apenas chamar à atenção para um acontecimento cultural (que para meros ”leigos” - como eu que gostam de ver pintura - é sempre uma atracção apesar das possíveis apreciações subjectivas, fundamentadas ou não, que cada um é livre de fazer) relativo a uma exposição que passara pela Tate Modern (aí mais ampla do que a que vem para o CCB) e pela Fundacíon Caixa Galicia (Santiago de Compostela).

E, quando escolhi reproduzir aquele quadro em concreto, pensei em duas coisas:
- por um lado a sua relação com o tema da violência familiar (certamente uma matéria interessante para qualquer jurista);
- e, por outro, lembrei-me “cínica” e criticamente (com todos os meus defeitos e limitações, próprios da natureza humana…por isso talvez «estupidamente») que algumas decisões judiciais (com todo o respeito que lhes é devido) até podiam ser acompanhados graficamente de algumas ilustrações. Claro que, perante aquele quadro, salvaguardando as devidas distâncias, de imediato me veio à memória o publicitado Ac. do STJ de 27/5/2004 (CJ STJ 2004, II, 204 ss., que também pode ser consultado em www.dgsi.pt), nomeadamente, quanto a algumas considerações feitas a nível da medida concreta da pena (simplificadamente, só para identificar o caso em questão, faria a referência: “violação de deveres conjugais versus desconfianças de fidelidade”).

Porém, para não correr o risco de poder estar a sugerir qualquer tipo de interpretação ou leitura (omitindo estas «cogitações»), socorri-me do livro que indiquei (Kahlo, Andrea Kettenmann, Taschen, Público, 2004, p. 39), onde colhi a informação objectiva que coloquei no posted em questão (depois que cada um fizesse o seu trabalho e lê-se o quadro como entendesse).

No entanto - não obstante procurar não incutir «ideias formadas» a quem quer que fosse, pretendendo tão só transmitir objectivamente o acontecimento (pensando eu que talvez este fosse um começo para podermos passar a ver grandes exposições em Portugal…) - no posted abaixo deste foi feita uma interpretação de uma leitura que eu não fiz, nem pretendi fazer.
Daí esta minha resposta, pedindo desde já desculpa por esta irreverência…

De qualquer forma, agradeço a leitura feita e… quanto a “sobressaltos feministas”, aproveito para recordar o também célebre acórdão conhecido pelo «macho ibérico», que hoje em dia, no mesmo tom cínico e crítico, faria acompanhar da publicidade da Galp energia relativa à «miúda do gás»….

23 fevereiro 2006

 

A propósito de Frida Kahlo

A propósito de Frida Khalo, vi a exposição da sua pequena mostra de pintura em Santiago de Compostela (a mesma que vem agora para o Centro Cultural de Belém), nas férias de Natal. As expectativas eram imensas em relação a esta pintora rodeada de uma aura quase mítica, não só por ter sido a companheira desse outro não menos mítico pintor que dá pelo nome de Diego de Rivera, o qual manteve relações privilegiadas com o papa do surrealismo – André Breton -, o amigo mexicano de Trotsky, que, com outros amigos, proporcionou a este o exílio em Coyocan, onde viria a ser assassinado pelo comunista espanhol Ramon Mercader, com auxílio de outro pintor mexicano também comunista – Sisneros - às ordens de Estaline, crime esse que foi efabulado por Jorge Semprum na «Segunda Morte de Ramon Mercader» , mas também pela originalidade da sua pintura, influenciada pelo onirismo e pelo insólito das associações de imagens característicos do surrealismo, mas confesso que me soube a pouco. De resto, essa foi a decepção de quase todos os que acorreram a Santiago de Compostela. Mas vale a pena ver, isso vale. De entre os quadros expostos, um dos mais impressivos é o que foi reproduzido neste blogue pela Dr.ª Carmo: aquele que representa uma mulher assassinada no leito, horrorosamente golpeada e ensanguentada, tendo ao lado, de pé, o seu assassino, que ostenta um sorriso sádico e sustenta numa das mãos uma faca de carniceiro. Mas sendo um dos quadros de carácter narrativo mais explícito, suscita leituras mais ideológicas ou mais psicológicas, consoante os gostos. A Dr.ª Carmo forneceu uma leitura de carácter mais ideológico, por onde perpassa um sobressalto feminista: o homem que mata a mulher por ciúme e que no tribunal alega: «Mas foram só uns quantos golpes!». A narrativa que eu li quando vi a exposição fala de outra maneira: Frida Kahlo, fortemente tomada de ciúmes por Diego de Rivera ter ido para a cama com a sua irmã (a relação deles foi sempre muito fora das convenções) , vingou-se, pintando o amante com traços particularmente sádicos, de que o riso satânico e o facalhão são expressões chocantes, e a mulher crivada de feridas e banhada em sangue.
Mas, afinal, que interesse têm estas leituras? Só o de serem meras leituras. Uma obra de arte não se refere a nada de exterior a ela.

 

A tortura em perspectiva

A divulgação de um comunicado da Human Rights Watch sobre os prisioneiros mortos em prisões do Iraque e do Afeganistão administradas pelos EUA permitiu a um antigo "conselheiro jurídico" da Casa Branca (um tal David Rivkin) um comentário muito significativo. Disse ele que é preciso pôr os números em perspectiva. E acrescentou: «Se dez pessoas foram torturadas até à morte em mais de 100 000 detidos, trata-se de uma média melhor do que a das duas guerras mundiais e da maioria dos sistemas penais civis.»
Portanto, vistas as coisas desta perspectiva, não há motivo para alaridos: a tortura só será criticável a partir de certo montante de vítimas.
Com conselheiros jurídicos assim, compreende-se como vai o direito na Casa Branca.

 

Combate ao negacionismo e legitimidade democrática

Agradeço o contributo do Artur Costa para o combate ao negacionismo. Como estamos em época de reforma penal, há que alertar quem de direito para a necessidade de reformulação do tipo penal já existente, manifestamente insuficiente, face às persistentes arremetidas de negacionistas teimosos e irrecuperáveis (sim, porque isso da recuperação dos delinquentes, como se sabe, é uma treta).
Particularmente feliz parece-me a ideia de criar uma entidade específica para determinar a lista de factos históricos incontestáveis cuja negação será punida. Assim se salvaria o princípio da legalidade (ele que tem passado tantos maus bocados, coitado). Mas essa Entidade teria que ser necessariamente escolhida pela Assembleia da República. Só assim teria legitimidade democrática. Quem, afinal, pode dizer o que é a verdade senão os eleitos pelo povo?

 

O negacionismo entre nós

O negacionismo afinal já é punido pela lei portuguesa. Quem mo lembra é o nosso companheiro de blogue João Paulo Rodrigues. Com efeito, o art. 240º, nº 2, b), parte final, do Código Penal, pune em certas condições a «negação de crimes de guerra ou contra a Paz e a Humanidade». Quais são em concreto os crimes que não podem ser negados não o diz a lei, que se fica por aquele enunciado indeterminado, a fazer alguma mossa no princípio da legalidade. Mas esse princípio já está habituado a um tratamento pouco carinhoso por parte do legislador.
Aqui fica, pois, o aviso deste vosso amigo. Antes de resolverem negar, pensem bem, procurem listas de crimes daquele tipo (consultem a Internet, enciclopédias, o Guiness, talvez a página do Ministério da Justiça), o maior número possível, pois podem estar incompletas. Cuidadinho na língua, é o que se recomenda.

21 fevereiro 2006

 

Contributo para o negacionismo

Para responder ao apelo de Maia Costa, faço a seguinte proposta: em vez de se estar a puxar pela cabeça para arranjar factos históricos devidamente comprovados cuja veracidade incontestável mereça a tutela do direito penal, até porque haveria sempre alguns que escapariam à memória e à capacidade inventiva do mais pintado, deveria criar-se uma Comissão (mais uma) devidamente representativa (em termos democráticos, claro) que estabelecesse periodicamente os factos que não poderiam ser negados por nenhum indígena, sob pena de prática de crime.
Essa Comissão poderia ser constituída por representantes eleitos pelo Parlamento, por membros indigitados pelos restantes órgãos de soberania e talvez por pessoas credenciadas indicadas pelos Conselhos Científicos das Universidades, tudo em proporção a estabelecer pela lei. Poder-se-lhe-ia chamar Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis.
Acrescentar-se-ia um artigo (mais um) ao Código Penal, mais ou menos do seguinte teor:
Quem negar publicamente, de viva voz, ou por escrito, imagem ou outro qualquer meio de expressão um facto histórico de veracidade devidamente comprovada pela Entidade Reguladora dos Factos Históricos Incontestáveis será condenado a uma pena de 2 a 8 anos de prisão.
Parágrafo Único: o crime é imprescritível e não admite retratação.

 

Negacionistas de todo o mundo, tremei!

Em diversos países europeus existe um crime curioso: o de negacionismo. Pratica o crime quem negar verdades históricas incontestáveis, como o Holocausto. Não se pense que falamos de países de duvidoso cariz democrático, pois é o que se passa na Alemanha, em França, e na Áustria. Ainda ontem na Áustria foi condenado um negacionista em pena de prisão, por, já lá vão 16 anos, ter negado precisamente o Holocausto.
Em Portugal, o negacionismo não é punido. Mas como estamos em época de reforma penal, aqui se deixam, para o caso de se pretender punir tão odiosa conduta, algumas sugestões criminalizadoras. Assim, poderia/deveria ser proibida e punida a negação dos seguintes factos incontestáveis que fazem parte do nosso património histórico inalienável: milagre de Ourique; milagre das rosas de D. Isabel; génio estratégico de Nuno Álavares Pereira; eficácia anti-castelhana da Padeira de Aljubarrota; superioridade moral da colonização portuguesa sobre as dos outros países europeus; patriotismo de D. Carlos e anti-patriotismo dos regicidas; carácter criminoso do "caso Camarate".
É evidente que é uma lista muito curta. Aceitam-se sugestões para aditamentos.

20 fevereiro 2006

 

NEVES RIBEIRO

Abro aqui um parêntesis para homenagear a memória de Neves Ribeiro, um bom jurista, um bom juiz, vice-presidente do STJ, e sobretudo um homem com uma grande sensibilidade humana, a irradiar a franqueza e a simplicidade das origens - as suas, situadas numa aldeia perto da Lousã, e as de todo o ser humano autêntico.

 

A religião e a liberdade de expressão

Ainda mais duas ou três coisas com pretexto nas caricaturas de Maomé:
1 - As caricaturas que eu conheço não ofendem os muçulmanos em geral nem o islamismo, como às vezes se tem afirmado. O que elas atingem é uma certa utilização da religião e do profeta Maomé para fins terroristas. Não é a essência dessa religião que é satirizada, mas uma certa concepção dela que desemboca numa das formas mais odiosas do fanatismo religioso. Será que os muçulmanos em geral professam essa forma de fanatismo? O que me levou a opor-me às caricaturas foi a conjuntura internacional que atravessamos. Tendo em vista esse contexto, o meio utilizado e a própria finalidade que presidiu à sua publicação, elas pareceram-me uma provocação gratuita.
2 - Não se pode argumentar com o facto de ser um interdito para os muçulmanos a representação icónica do profeta. E depois? Os que não professam essa religião estão obrigados a respeitar esse interdito? Digo: os que não professam essa religião, independentemente de serem árabes ou europeus, ou deste ou daquele canto do mundo Se é preciso respeitar as crenças de quem é crente e, dentro das crenças, as diferenças de cada uma delas, também é preciso tolerar as convicções de quem não é crente e não acredita na divindade, nem em dogmas, nem se deixa tocar por símbolos religiosos e, por isso, não se sente obrigado a respeitá-los, podendo exprimir o que sente e pensa por qualquer meio de expressão, incluindo a caricatura e a sátira. Isto não significa que não se respeite as crenças dos crentes, que têm de ser livres não só para exercerem o seu culto e afirmarem as suas convicções e desenvolverem o seu apostolado, como também para criticarem e manifestarem a sua indignação em relação àqueles que põem em causa aquilo em que acreditam. O que não podem é exigir o silenciamento dos «infiéis». Aliás, quantas vezes tem sucedido que as críticas mais virulentas e as sátiras mais mordazes a determinados aspectos de uma religião ou as reacções mais iconoclastas procedem exactamente de espíritos religiosos, mas que não se conformam com a irracionalidade mais absurda que há em todas as religiões?
3 - Não se pode limitar a liberdade de expressão a pretexto de um interdito relativamente ao sagrado, seja qual for a forma que ela revista, isto ao contrário do que parecia defender há tempos Eduardo Prado Coelho numa das suas crónicas habituais no «Público». A nossa cultura e a nossa civilização encontram também aí o seu fundamento. Basta lembrar entre muitos outros, Voltaire, Sade, Lautréamont, muitos surrealistas, quer nas artes plásticas, quer na literatura, Guerra Junqueiro, isto para só falar em alguns clássicos europeus que eu, nos meus limitados horizontes culturais, conheço melhor. Foi graças à ousadia de muitos desses que se progrediu alguma coisa no caminho de uma secularização que encontra o seu correlativo numa cada vez maior afirmação da autonomia humana e nos correspondentes direitos humanos, quando não no caminho da humanização das religiões. A própria liberdade de expressão foi uma conquista à esfera do sagrado, o «sagrado violento», para empregar uma expressão do filósofo Gianni Vatimo («Acreditar Em Acreditar»), que inclui Cristo no número dos secularizadores, considerando que «talvez o próprio Voltaire seja um efeito positivo da cristianização (autêntica) da humanidade e não um blasfemo inimigo de Cristo».
E por que é que o sagrado só há-de compaginar-se com a sisudez, o temor reverencial e a veneração, quando a mesma divindade que nos criou à sua imagem e semelhança, segundo uma perspectiva teológica, nos deu esta imensa faculdade de riso, de humor e de irreverência? Não será isso tributário do tal «sagrado violento»?
4 - Os sentimentos religiosos não podem fundar indiscriminadamente uma limitação da liberdade de expressão, sobretudo com o pretexto de ofensa a sentimentos difusos de uma comunidade. Será preciso lembrar os perigos que isso acarreta e buscar exemplos antigos e recentes (dos nossos dias) que tornam palpáveis esses perigos? Então relativamente à obra de arte, que constitui um universo autónomo de significações, não deverá o princípio da livre criatividade e de uma auto-referencialidade específica prevalecer sobre quaisquer outros princípios e considerações?

 

O agressor, a política e a utilização da história

Desde que há uns dias li o postal do Maia Costa quem é o agressor?, que tenho vontade de o comentar, a propósito, essencialmente, de uma linha de leitura que me parece subjacente à polémica que determinou esse postal e que persiste nele, a legitimação das acções políticas de hoje centrada no passado (quase todos os totalitarismos se fundaram na resposta a agravos anteriores, de preferência uns mais e outros menos distantes, estribados em certas leituras da história).
Ainda não tive tempo (eufemismo de conseguir) para alinhavar umas linhas mínimas sobre o tema, mas, entretanto, li uma referência de Filipe Nunes Vicente que me parece muito pertinente, em que se referem algumas das bases canónicas sobre as histórias destas agressões (partindo dos textos). Fico-me, por ora, por essa nota.

19 fevereiro 2006

 

Kahlo


A não perder a exposição temporária FRIDA KAHLO Vida e Obra no CCB, de 24 de Fevereiro a 21 de Maio de 2006.
São apresentadas 26 obras e uma colecção de fotografias e objectos pessoais da pintora que viveu entre 1907-1954. A imagem junta corresponde ao quadro “unos cuantos piquetitos!”, de 1935, feito após a leitura de uma notícia de jornal sobre uma mulher assassinada por ciúme, tendo em julgamento o marido (assassino) justificado os seus actos perante o juiz dizendo “mas foram apenas uns quantos golpes” (cf. Kahlo, Andrea Kettenmann, Taschen, Público, 2004, p. 39).

18 fevereiro 2006

 

Georgette e a antropóloga

Achei curioso que, depois de ter dado à estampa uma carta de uma tal Georgette tecendo considerações sobre a prostituição e a sua vida profissional como prostituta, a revista «Visão» do passado dia 22 de Fevereiro, tivesse publicado uma entrevista da antropóloga Ana Lopes, que concluiu a sua tese de doutoramento na University College of London e criou um sindicato internacional de profissionais do sexo, na qual há alguma coincidência entre os pontos de vista expressos naquela carta e os daquela antropóloga, contribuindo para desmanchar algumas ideias feitas sobre o assunto. Uma tal coincidência, salvo em pequenos aspectos de pormenor, prova uma «sensibilidade» comum ao problema entre a Georgette e a antropóloga, que, declarando-se feminista, rejeita todavia as teses das «chamadas feministas abolicionistas, que têm tendência moralista para achar que a prostituição não é um trabalho, mas um problema social», como afirma. Conhecer-se-ão ambas?
Eis alguns passos da entrevista:
«P - O objectivo do Sindicato é a legalização ou é descriminalização de toda a actividade?
R - A descriminalização. A ideia é que o trabalhador do sexo não é diferente de qualquer outro. Tudo o que é problemático já é previsto e punido por lei: o tráfico, o rapto, a violação, a violência, o sexo com menores. Tudo isto já está na lei geral. Não é preciso criar um corpo de lei especial para esta indústria. As leis especiais só fazem com que a indústria seja ainda mais estigmatizada e as pessoas mais discriminadas. O problema é que os direitos destes trabalhadores não estão assegurados e as suas condições de trabalho não são fiscalizadas.
(…)
P - Não será legítimo considerar a descriminalização um incentivo?
R - A indústria do sexo está no seu melhor. Está sempre em expansão, por muito profunda que seja a crise. É uma questão de imaginação e esse é o limite. As pessoas vão sempre inventando novas formas de agir. Seria verdade se, pela opressão ou pela repressão legal, a indústria não crescesse tanto. Mas quanto mais escondida e ilegal, mais ela cresce.
(…)
P - Já existem prostitutas licenciadas?
R - Muitas. Tenho colegas no sindicato que completaram cursos, mestrados e até doutoramentos. Há um grupo que começou a pensar: toda a gente quer estudar a prostituição e a indústria do sexo em geral, mas quem sabe mais disto, afinal, somos nós, temos de começar a fazer a nossa própria investigação.
P - E essas estão na profissão porquê?
R - Há o preconceito de que só se vai para a prostituição quando se não tem nada. Essas provam que isso não é verdade. São pessoas com muitas outras opções, mas escolhem estar nesta indústria. Porque é rentável, porque é flexível, porque podem ser independentes
P - Por gosto?
R - Sim, quer dizer, por gosto, na medida em que qualquer trabalho pode dar gosto.
P - Isso ofende as puritanas?
R - Penso que sim. O sexo não é nada do outro mundo, não é nada de sujo, não é nada de criminoso, portanto, qual é o problema? Na minha sociedade ideal, as pessoas não teriam de fazer nada por dinheiro. Mas, na sociedade capitalista, temos de trabalhar e de vender alguma parte do nosso corpo, quer nos dediquemos ao trabalho manual quer ao intelectual.
P - Não acha que há uma diferença de ordem moral entre vender o corpo e a força de trabalho?
R - Não. Não acho. Mas há uma grande diferença entre vender o corpo e vender armas… Aliás, não gosto nada da expressão «vender o corpo». Porque a pessoa, depois de uma transacção sexual, continua a ser dona do seu corpo. Vende um serviço, como quem vende a voz … Há imensas pessoas que vendem o corpo: actores, modelos … São tão bem vistos, têm um estatuto tão alto na sociedade e não fazem mais que vender o corpo.
P - A prostituição ainda é só uma profissão de mulheres?
R - Não, principalmente no Reino Unido, onde o número de homens e de «transgeners» é enorme. Não se pode já falar de uma indústria de mulheres.
P - Existem prostitutos de rua?
R - Já houve mais. Com a Internet, os telemóveis e a liberalização dos «media gay», que favoreceu a publicitação dos seus serviços, o número dos que trabalhavam na rua diminuiu.
P - E já há mulheres à procura de sexo?
R - Cada vez mais. Continuam a não ser tantas como os homens, porque existe também um estigma. Quando as mulheres podem aceder anonimamente a serviços sexuais ou através da Internet, essa procura existe. Mas quando isso implica fazer a coisa num local público… A alternativa é o turismo sexual: a mulher vai para um país que não conhece e aí sente-se à vontade. Não há nada de diferente na natureza masculina ou feminina em relação ao sexo. O que existe é preconceito de séculos, segundo o qual a mulher não é uma pessoa independente, que possa procurar o seu prazer sexual e que paga para o desfrutar.»

16 fevereiro 2006

 

Adultério necessário

Quatro reputados constitucionalistas foram ouvidos pelo Público sobre a eventual inconstitucionalidade do art. 1577º do CC, que só admite o casamento entre pessoas de sexo diferente. Já aqui tomei posição sobre o tema e agora só me interessa comentar as opiniões subscritas pelos ditos professores.
Não espanta a posição de Jorge Miranda, contrária à admissão do casamento homossexual, coerente com a sua mundividência, expressa também na sua oposição à despenalização da IVG. Já aqui expliquei que é abusiva a ligação entre filiação e casamento, abusiva e tributária de uma concepção muito conservadora do mundo nesse aspecto, claramente desfasada do nosso tempo.
O que verdadeiramente me supreendeu foram as opiniões de Vital Moreira, quase coincidentes com as de Paulo Rangel. Ambos defenderam que o art. 1577º não é inconstitucional e fazem-no com base numa interpretação de tipo subjectivista (o legislador constitucional não estava a pensar no casamento homossexual quando fala em casamento!), completamente desadequada em matéria de direito constitucional, como acentuou Pedro Bacelar («temos de interpretar a Constituição aos olhos do mundo de hoje e não à luz do que o legislador pensou no passado»).
Inaceitável é também a posição de Paulo Rangel quando admite que poderia haver, quando muito, uma inconstitucionalidade por omissão (não prever a lei o casamento homossexual). Mas a inconstitucionalidade do art. 1577º não é por omissão: é por acção, por apenas admitir o casamento entre pessoas de sexo diferente; é na exclusão do casamento entre pessoas do mesmo sexo que reside a discriminação. Essa exclusão poderá ser remediada pelo legislador ordinário com legislação paralela para as pessoas do mesmo sexo. Mas, se ou enquanto tal não suceder, a norma vigente estabelece de facto uma discriminação em razão da orientação sexual e daí a sua inconstitucionalidade.
Ora, é isso precisamente que Vital Moreira e Paulo Rangel negam em uníssono, com o argumento brilhante de que «os homossexuais podem casar-se, desde que com pessoas de sexo diferente». Uma nota excepcional de humor negro, digna da antologia de André Breton! Efectivamente os homossexuais não estão impedidos de casar-se com pessoas de sexo diferente. Só que, caso o façam, das duas uma: ou renunciam à sua orientação sexual, o que parece não ser legalmente exigível (embora muita gente gostasse que sim) ou cometem necessariamente adultério quando quiserem praticar relações sexuais. Quid juris?

15 fevereiro 2006

 

Quem é o agressor?

A fogosa comentarista Teresa de Sousa, reputada "atlantista", insurgiu-se contra o MNE por este ter dito, aquando da cerimónia de doutoramento honoris causa de Aga Khan na Universidade de Évora, que, no confronto Ocidente-Islão, temos sido nós os maiores agressores, o que a jornalista qualifica imediatamente de "terceiro-mundismo" (há tanto tempo que não se ouvia isto!) e de "antiamericanismo" (evidentemente).
No entanto, aquela afirmação limita-se a reconhecer uma realidade histórica indesmentível. Não é preciso ir às Cruzadas, nem ao colonialismo, que apanhou nas suas garras quase todos os países islâmicos, de Marrocos à Indonésia. As "intervenções" ocidentais adquiriram maior intensidade com o fim do Império Otomano (e a subsequente partilha dos despojos entre a Inglaterra e a França) e muito particularmente depois da 2ª Guerra Mundial, quando aos agressores tradicionais se juntou um novo parceiro (e que parceiro!): os EUA. E foi nessa época que se abriu uma ferida profunda que não tem cessado de agravar-se - a criação do Estado de Israel, que se destinava a recompensar os judeus pela perseguição nazi, recompensa que foi paga afinal pelos palestinianos, escorraçados de grande parte do seu território e depois colonizados e oprimidos no que restava dele, sempre com o apoio directo e militante dos EUA e do "Ocidente" em geral. Tudo isto a par de intervenções militares (Líbano, Afeganistão, Iraque) ou de golpes militares fomentados do exterior ou da manipulação política interna, mediante o apoio a ditaduras e regimes feudais ou, em contraste, o fomento da queda de regimes nacionalistas e laicos. Tudo por causa do cheiro do petróleo, como se sabe. Muito, muito mais se poderia acrescentar.
Por isso, as manifestações islâmicas, cujas imagens mais "fanáticas" as TV's ocidentais não se cansam de passar, têm de ser compreendidas neste contexto global.

 

Fogo amigo

No decorrer de uma caçada, Dick Cheney, o vice-presidente dos EUA, confundiu um amigo com uma codorniz e baleou o amigo. É o chamado "fogo amigo". Com caçadores assim, não há perigo para as espécies cinegéticas. O perigo maior é para os amigos e aliados deste caçador incompetente.

14 fevereiro 2006

 

Terrorismo ocidental?

Artigo 10.º (Liberdade de expressão) da CEDH

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.

2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

No caso İ.A. c. Turquie, decisão de 13/9/2005 (em que o requerente - um editor que publicara um livro que fora considerado como uma blasfémia para o islamismo - invocava que a sua condenação penal atentava contra o seu direito à liberdade de expressão), o TEDH, não obstante continuar a reconhecer que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática”, invocou o disposto no art. 10 nº 2 da Convenção, chamando à atenção que, “no contexto das crenças religiosas pode legitimamente figurar a obrigação de evitar expressões que são gratuitamente ofensivas para outrem e que são profanadoras”.

Perante o conflito entre “por um lado, o direito do requerente de comunicar ao público as suas ideias sobre a doutrina religiosa e, por outro lado, o direito de outras pessoas ao respeito da sua liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, o TEDH acabou por concluir que, no caso, a publicação daquele livro (romance) representava “não só uma opinião provocadora mas um ataque injurioso contra a pessoa do profeta do Islão”.

Assim, naquele caso concreto, considerou a actuação do Estado Turco justificada, sendo a condenação (em pena de multa, após “conversão” de pena de prisão cumulativa) proporcionada aos fins visados, havendo uma “necessidade social imperiosa” a impor uma protecção contra os ataques ofensivos de questões consideradas como sagradas para os muçulmanos.

Mas, na “opinião dissidente” dos Juízes vencidos, houve violação do disposto no art. 10 da Convenção.
Além de defenderem uma concepção da liberdade de expressão tal como exposta no caso Handyside c. Reino Unido de 7/12/1976, chamaram à atenção de que não se pode condenar todo um livro e sancionar o seu editor isolando algumas frases, ainda que injuriosas e (…) que “ninguém é obrigado a comprar ou a ler um romance”; acrescentam que “uma sociedade democrática não é uma sociedade teocrática”, havendo que ter cuidado com o chilling effect da condenação penal, “próprio para dissuadir os editores de publicar livros que não são estritamente conformistas ou «politicamente (ou religiosamente) correctos»” (risco perigoso de auto-censura…).
Ver, ainda, os citados casos Otto-Preminger-Institut et Wingrove (decisões de 20/9/1994 e de 25/11/1996), em que “as «vítimas» eram a “população cristã”.
Pois bem.
Recuperando as famosas caricaturas, temos de perguntar:

Será preciso voltar a “censura”? Será falta da «abençoada» sensatez que desculpabiliza?
Ou será ainda exercício da liberdade de expressão?

A vida já é tão espartilhada que, qualquer dia, se deixarmos de ser razoáveis (optando por punir, punir, punir tudo o que não for «socialmente adequado»…), passaremos a ver fantasmas ou terroristas (institucionais e não institucionais) por todo o lado … ou, então, viveremos «Presidiariamente» (nome do quadro do Álvaro Lapa, de 2005, publicado neste site mais abaixo)!

13 fevereiro 2006

 

CONFLITO DE CIVILIZAÇÕES?

Relativamente a um tema que já suscitou outras intervenções no Sine Die, o Pedro Vaz Patto enviou mais um contributo, que agradeço vivamente e que tenho o maior gosto em publicar:

A propósito da recente publicação de caricaturas de Maomé e das reacções de indignação que se seguiram, tem-se levantado de novo a questão do conflito de civilizações. Há mesmo quem tenha dito que estamos perante o exemplo acabado de que este conflito está aí e a ele não se pode escapar. Uma perspectiva assustadora, que faz temer a repetição de situações como esta nas nossas sociedades, onde estão cada vez mais presentes pessoas de religião muçulmana.
Penso, no entanto, que, a este propósito, antes de falar em conflito de civilizações, importa clarificar princípios que se apresentam, às vezes superficialmente, como característicos de cada das civilizações em confronto. Um deles é o da liberdade de expressão e o seu estatuto nas sociedades democráticas. O outro é o da relação entre Islão e violência.
A liberdade de expressão, estrutural numa sociedade livre e democrática, não pode ser absoluta, ao contrário do que se tem dito e do que poderia decorrer de uma concepção individualista e associal da liberdade. Não há liberdades absolutas. A liberdade de expressão há-de compatibilizar-se com as outras liberdades e outros valores constitucionais. A liberdade de cada um há-de compatibilizar-se com a liberdade dos outros.
E também não é verdade que nas nossas sociedades nada exista de sagrado, nada exista digno de um respeito que se imponha à liberdade de criação e de sátira, que nelas nada exista que não possa ser objecto de troça e de escárnio. Um inquérito publicado recentemente (a 9 de Fevereiro) pelo jornal francês La Croix revelava que para uma clara maioria dos franceses não é admissível a sátira que fere sentimentos religiosos, ou, por exemplo, a dignidade de pessoas com deficiência ou de determinada raça.
A liberdade de expressão não impede a tipificação dos crimes de difamação e de injúrias, que atingem o direito à honra e a dignidade dos visados. Também não impede a punição de crimes contra o respeito devido aos símbolos nacionais ou contra o respeito devido aos mortos. Não é obviamente aceitável o desrespeito para com as vítimas do Holocausto, ou de outros massacres ou graves atentados contra os direitos humanos que a História regista.
E também são puníveis, na nossa e noutras legislações penais, atentados contra os sentimentos religiosos. O artigo 252º do Código Penal português pune o ultraje a acto de culto religioso e o artigo 251º do mesmo diploma pune o ultraje por motivo de crença religiosa. Saliente-se que este último artigo pune a ofensa ou escárnio em razão de crença ou função religiosa apenas quando tal se verifique de «forma adequada a perturbar a paz pública». Parece-me criticável esta exigência, pois o respeito pelos sentimentos religiosos de outrem justifica, por si só, a punição e não deveria fazer-se a distinção entre os casos que podem afectar a paz pública (como é, inequivocamente, aquele a que estamos a assistir) e os que não a afectam, porventura porque dizem respeito a uma comunidade religiosa pacífica ou de reduzida expressão numérica. No caso em apreço, as expressões de solidariedade de vários responsáveis políticos para com os muçulmanos ofendidos nos seus sentimentos deveria ter sido anterior, e não posterior, às manifestações de violência e de perturbação da paz pública. Também se criticou o primeiro-ministro espanhol, que exprimiu essa solidariedade num comunicado conjunto com o primeiro-ministro turco, por nunca ter exprimido uma solidariedade semelhante com os católicos atingidos por ultrajes não menos graves ocorridos recentemente em Espanha.
Está em jogo, também aqui, a dignidade das pessoas feridas nos seus sentimentos religiosos (já não, como sucedeu no passado, a defesa da religião, ou de uma religião tida por verdadeira). E, porventura, feridas ainda mais do que o seriam se fosse atingida a sua honra pessoal, ou a honra dos seus familiares mais queridos. E está em jogo, também, a própria liberdade religiosa dessas pessoas. Afirma-se na “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou no credo”, adoptada pela O.N.U. em 1981, que «a religião e o credo constituem, para aquele que os professe, um dos elementos fundamentais da sua concepção de vida e (…) devem ser integralmente respeitados e garantidos».
Dir-se-á que por esta via se pode anular a própria liberdade de expressão, pois haverá sempre alguém que se sinta ofendido com uma qualquer expressão negativa a respeito da religião, ou de uma religião. Mas não é assim. Há critérios objectivos que, tal como permitem distinguir a crítica de comportamentos (que poderá ser admissível e saudável numa sociedade democrática) da ofensa que atinge a própria pessoa, enquanto tal, na sua dignidade, também permitem distinguir a expressão argumentativa de discordância, no âmbito do debate de ideias, em relação a uma qualquer religião (ou a todas), da invectiva ultrajante que fere, ridiculariza ou humilha. Há que distinguir a crítica, típica de sociedades tolerantes, da ofensa e do ultraje, que são uma clara expressão de intolerância.
Podem, pois, os muçulmanos reclamar o respeito que lhes é devido nas sociedades livres e democráticas. Terão de fazê-lo, porém, na observância do quadro legal dessas sociedades, que separa o Estado e a sociedade civil (por isso, não pode um Estado ser responsabilizado pelo que é publicado num jornal), assim como separa o poder executivo e o poder judicial (sendo que é só a este que cabe dirimir este tipo de conflitos). E, sobretudo, que não permitem que a religião possa ser pretexto para manifestações de violência.
Como cristão, não posso deixar de exprimir esta minha convicção: certamente Deus será mais ofendido quando o Seu nome é utilizado para justificar o ódio e a violência do que quando é visado por uma caricatura ultrajante e de mau gosto. Como tem salientado o Papa Bento XVI, é um grave abuso (uma verdadeira blasfémia) usar o nome de Deus, que é Amor (Deus caritas est – foi o título escolhido por este Papa para a sua primeira encíclica), para justificar o ódio, a vingança e a violência. Também a maior parte dos muçulmanos («o verdadeiro Islão» a que se referiu várias vezes João Paulo II) associa Deus à misericórdia, e não ao ódio. Por isso, é compreensível que os muçulmanos se sintam indignados com caricaturas que associam Maomé ao terrorismo. Mas quem exprime essa indignação através da violência cai numa evidente contradição.
Para evitar que, a partir de situações como esta, se desencadeie um conflito de civilizações, devem as sociedades democráticas ocidentais atender aos limites da liberdade de expressão e ao respeito devido aos sentimentos religiosos das pessoas. Mas, por outro lado, devem os responsáveis muçulmanos afirmar com vigor que é abusivo invocar o Islão como justificação para a violência.

Pedro Vaz Patto

 

Guerra imediata contra o Irão

O conhecido cronista Luís Salgado de Matos acaba de declarar guerra ao Irão. E já disse como vai ser: cirúrgica, sobre os centros nucleares, não nuclear e sem mortos (sem danos colaterais, portanto). Delegou a guerra na NATO. (Não sabemos se esta organização foi ouvida.)
Deus nos proteja contra certos pregadores. Deus lhes dê juízo.

 

Ainda as caricaturas dinamarquesas

Já me pronunciei anteriormente sobre este tema, nos dias 3 e 7 deste mês. Poderei resumir a minha posição assim: a reacção "fundamentalista" dos muçulmanos não é de natureza religiosa ou "civilizacional", mas política; não é dirigida contra a(s) liberdade(s) ou a democracia, mas sim contra o modo como o "Ocidente" tem intervindo no mundo muçulmano e especialmente no mundo árabe (e especialmente na Palestina e ultimamente no Iraque).
Posto isto, considero que é inegável que as caricaturas têm um sentido ofensivo (ao associar a religião muçulmana ao terrorismo), mas que, por outro lado, dada a restrita difusão do jornal onde foram inicialmente publicadas, nunca teriam repercussão significativa se não tivessem recebido o efeito multiplicador provocado pela sua "denúncia" junto dos países muçulmanos. Este é um caso em que é o ofendido que difunde e multiplica a ofensa. Mas também é evidente que o momento político que se vive no Médio Oriente, nomeadamente, não é para gracinhas e qualquer equívoco pode funcionar como rastilho. O mundo árabe, em especial, sente-se profundamente ferido. E acontece que a Dinamarca participa na ocupação do Iraque e que também militares dinamarqueses praticaram "abusos" contra prisioneiros, reconhecidos e punidos recentemente em tribunais dinamarqueses.
Mais duas notas marginais. A primeira para a manifestação de "solidariedade" junto da embaixada dinamarquesa em Lisboa. A Dinamarca é um país estimável a muitos títulos, mas não certamente por ser "mais rico, mais protestante e mais alto" que Portugal!!! (Ou seria uma tentativa de humor? Mas o humor sem piada é lastimável). A segunda é igualmente para lamentar o rudimentar nível de análise a que desceu o filósofo Fernando Gil. Segundo ele, as manifestações contra as caricaturas mostram que o mundo muçulmano entrou "oficialmente" em guerra contra o Ocidente!!! Penso que até Bush já consegue análises mais elaboradas do mundo de hoje...

 

Um homem virtuoso

Levanta-se cedo e deita-se muito antes da meia-noite. Sai logo de manhãzinha para o trabalho e (sempre que pode) leva os filhos para o colégio. Chega a casa, depois de um estafante dia de trabalho, entre as 19,30 e as 20 horas e raramente volta a sair. O resto do tempo é para a família, assim como os fins de semana. Não janta, come alguma coisa de duas em duas horas. Senhor de um bom coração, não tem inimigos. É modesto, ponderado, gosta de ouvir os outros e de tratá-los com respeito. Não se mete em política.
E este homem simples é simplesmente o herdeiro do homem mais rico de Portugal. Mas, note-se, tal como ao pai, pouco lhe interessa a riqueza: a sua ambição é criar valor e muito pouco usufruir os frutos da riqueza criada. Ao ponto de, quando vai gozar férias na neve, partilhar a mesma casa com amigos, e este ano vai trocar a Suíça por França por causa do preço. (Para quem quiser saber mais pormenores, veja o Público de 12 passado, pp. 36-37.)
Este homem não é apenas virtuoso, é quase um santo. Por isso é rico. Por isso merece ser rico.
E nós, os pobres, os remediados, os medianamente abastados, que nos levantamos tarde, que quase nunca levamos os filhos à escola (muito menos ao "colégio"), que nos empanturramos ao almoço e ainda queremos jantar, que gostamos de sair à noite e aos fins de semana, que até temos alguns inimigos (certamente por causa do "coração"), que às vezes até nos irritamos com os outros, em especial os familiares, que gostamos de política, como haveríamos de ter direito a férias na neve (aliás perigosas para os plebeus, como sabemos)?! A riqueza é para os virtuosos. A nós, os pecadores, resta-nos a inveja, esse mal nacional diagnosticado por José Gil. Invejamos os ricos, mas não sabemos ser virtuosos como eles, não queremos assumir uma vida de sacrifícios e renúncias como eles levam. Qual a admiração que os deuses (no plural, para não ferir susceptibilidades entre eles) se ponham do lado dos ricos?

 

Circulação entre a política e os negócios

Manuela Ferreira Leite vai entrar para a administração do Banco Santander de Negócios, onde vai encontrar outras figuras ilustres da vida política, ex-governantes: António Vitorino, Eurico de Melo, António Borges (este, ainda aspirante a governante), Elias da Costa. Outros ex-ministros e ex-secretários de Estado estão noutros grupos financeiros.
No tempo do antigamente era vulgar os ministros, ao deixarem de o ser, passarem a administradores de bancos e grandes empresas. A (maledicente) oposição criticava (baixinho, claro) essa circulação, falando de "promiscuidade" entre a governação da coisa pública e a gestão do capital privado.
Enganava-se, porém: esse movimento existe tanto em ditadura como em democracia - está inscrito na ordem natural das coisas.

 

Álvaro Lapa


11 fevereiro 2006

 

A sagrada liberdade de expressão

Escrevi um artigo no JN sobre a liberdade de expressão, a propósito das mundializadas caricaturas dinamarquesas. Escrevi contra a corrente (uma certa corrente) e com a intenção de também provocar. Mas depois quase me arrependi. Escrever é arriscar uma opinião na flutuação das águas e, justamente por isso, Augusto Abelaira titulava as suas saudosas crónicas de «Escrever na Água». No próprio dia em que mandei a crónica para o JN, fui no comboio para Lisboa com o meu amigo Manuel António Pina, que tinha escrito sobre o tema em sentido oposto ao meu. Debatemos o assunto e chegámos à conclusão que estávamos de acordo quanto ao essencial, mas divergíamos na forma. De qualquer maneira, se pudesse retirar o escrito, tinha-o feito. No dia seguinte – dia da publicação do artigo – nem quis olhar para o jornal. Sucede que ontem, sexta-feira, li no «Público» a opinião de Saramago, a convergir com a minha. Ao lado, porém, vinha a opinião do filósofo Fernando Gil, em sentido diametralmente oposto. A conclusão a tirar é a seguinte: o tema da liberdade de expressão converteu-se, afinal, num tema fracturante, mesmo deste lado do mundo. E o que é que não é fracturante nos dias que correm, em que deixaram de se verificar os alinhamentos nítidos em relação a questões fundamentais e não fundamentais, com frequência se deparando posições de pessoas à esquerda ou à direita que nos surpreendem?
O texto da minha crónica era o seguinte:
«A liberdade de expressão é um valor fundamental. Tão fundamental, que às vezes ela é defendida de uma forma fundamentalista. Tendo sido duramente conquistada ao espaço do sagrado em nome da autonomia humana, frequentemente se tem visto entronizá-la no espaço do sagrado. Tornou-se, por isso, um valor indiscutível, uma espécie de dogma de carácter laico. Não é por acaso que tão correntemente se adjectiva a liberdade de expressão de «sagrada» - a «sagrada liberdade de expressão». Se com isso se pretende acentuar o carácter fundamental da liberdade de expressão, quer como direito ou liberdade que está na base de quase todos os outros direitos, liberdades e garantias, quer ainda como direito que faz parte daquele núcleo de direitos impostergáveis do indivíduo ou do cidadão, certo é que, muitas vezes, se descamba para a sua defesa como valor indiscutível, dogmático e sacralizado. A liberdade de expressão não se discute e ponto final. É assim que se tem processado uma grande parte da discussão travada em torno das caricaturas de Maomé. Dessa forma, opõe-se uma espécie de fundamentalismo a outro fundamentalismo, um de carácter laico e outro, religioso. Ora, a liberdade de expressão claro que é fundamental, mas não se impõe como um absoluto. O que está em causa é o seu uso concreto em face de outros valores. E se a liberdade de expressão pode exercer-se sobre todo e qualquer objecto, aí residindo provavelmente o seu absoluto, é preciso ponderar na prática o seu uso e a forma do seu uso, ou seja, ver em que circunstâncias é que ela vai ser exercida, a finalidade que se pretende obter e o modo e o meio que se vão usar para atingir esse fim, porque tudo isso é relevante. Não se trata de pura cedência, como às vezes se ouve; trata-se de ponderação».
A opinião de Saramago é a seguinte:
«Que algumas manifestações tenham sido organizadas não deve surpreender-nos, porque já se sabe como é fácil. E também não me surpreendeu a violência com que se deram. O que me apanhou mesmo desprevenido foi a irresponsabilidade do autor ou dos autores dos desenhos. Alguns opinam que a liberdade de expressão é um direito absoluto, o único direito absoluto que existe, enquanto todos os outros são relativos. A realidade crua impõe limites. Imaginemos que o desenhador dinamarquês, em vez de fazer um desenho a ridicularizar Maomé, faz um dizendo que o director do jornal é um imbecil. Seria muito corajoso, mas no dia seguinte estaria provavelmente na rua. Autocensura? Não se trataria de autocensura, mas de usar o senso comum. Numa situação como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que há em redor destes temas, o senso comum ditar-nos-ia o que fazer. Alguém verdadeiramente responsável que tivesse consciência de que um desenho pode ser como lançar gasolina sobre o fogo, guardá-lo-ia para melhor ocasião.»
É o autor do «Evangelho Sobre Jesus Cristo», um livro que um Secretário de Estado queria mandar para a fogueira e que, na realidade pôs no índex, quem assim fala. Não que a opinião de Saramago deva ser sobrevalorizada, mas de qualquer maneira a sua opinião ilustra o que comecei por dizer: hoje não há praticamente tema nenhum que seja indiscutível e que congregue no mesmo barco pessoas aparentemente da mesma família. Há no entanto uma posição que se me assemelha clara: a liberdade de expressão não deve ser limitada para além dos limites que a lei e a Constituição impõem para salvaguarda de outros direitos fundamentais. Nomeadamente, não deve ser limitada pela pressuposta intocabilidade de símbolos ou dogmas religiosos ou por uma espécie de interdito relativamente ao sagrado. Nem tão pouco por uma pressuposta ofensa de sentimentos religiosos de quem quer que seja. Neste campo, o que há a salvaguardar é a liberdade de culto e de crença, e temos de reconhecer que as caricaturas, por muito inoportunas e de mau gosto que sejam, não lesam esses direitos. O problema é outro. Se a pintora Paula Rego, por exemplo, fizesse nesta altura uma série de quadros, no seu conhecido estilo, em que satirizasse pesadamente o profeta Maomé e a relação da religião com as «guerras santas», isso não seria certamente contestável, a não ser provavelmente com critérios estéticos. Fazer caricaturas num jornal, como as que foram feitas, num momento destes, tem um sentido diferente e acho que não pode ser defendido da mesma maneira.

09 fevereiro 2006

 

Portugal e a licenciosidade

Circunstâncias particulares impediram-me nos últimos dias de acompanhar a comunicação social e a blogosfera portuguesas, até que ontem à noite tive oportunidade de passar uma vista de olhos pelos jornais e aí li um texto imputado a Sua Excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.
Hoje, só ao fim da tarde, pude tentar a confirmação no sítio do ministério dos negócios estrangeiros, onde encontrei a declaração do sr. Ministro «sobre a crise dos cartoons». Constatei então que constitui um texto cuja síntese e riqueza geram um desafio hermenêutico para o intérprete, em particular para o jurista já que lá se fala de direitos, em particular da «liberdade de expressão», da «liberdade religiosa» e dos limites da primeira.
Este postal é apenas uma confissão ou um pedido de ajuda, pois em nenhum dos vários segmentos em que se revelou necessária interpretação consegui chegar a uma resposta.
Desde logo fui incapaz de deslindar a quem imputar a declaração:
Se ao Estado português pois a declaração inicia-se por «Portugal lamenta...» (e na afirmativa, avaliar se nesta matéria existiu concertação de órgãos de soberania, nomeadamente com a Presidência da República)
Se ao executivo (realmente não parece que deva ser sua excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros a expressar as posições do Presidente da República)
Se a Sua Excelência o sr. Ministro de Estado e dos Negócios estrangeiros que assina o texto?
Se ao sr. professor doutor de direito já que no texto se encerram vários elementos retóricos de uma lição?
Se ao dramaturgo que também é, dado o tom dramático (e até parece que esse autor reconhecido, para gáudio colectivo, pode, a breve prazo, ser um dos «autores nacionais» representados no Dª Maria)?
Se o historiador marcado pelo exemplo da personagem que o fascina, um tal de D. Afonso Henriques que se destacou pelo exemplo de ecumenismo respeitoso do islamismo e que não suportava quaisquer abusos que fossem perpetrados contra os muçulmanos pelas hordas do norte da Europa?

Nem sequer consegui perceber quem seriam os destinatários:
Serão os portugueses que ficam assim a saber a distinção entre liberdade e licenciosidade (o texto até está escrito na língua de Camões)?
Será a imprensa já que o texto vem na entrada relativa a «informações à imprensa»,
O mundo? Já que é o titular da pasta dos negócios estrangeiros que comunica de forma segura e clara logo no primeiro parágrafo que «Portugal lamenta e discorda da publicação».
As vítimas? Os muçulmanos atingidos, em especial aqueles cujo sofrimento é mais intenso sempre revivido quando na sua leitura diária compulsam a imprensa europeia e por força dessa dor se manifestam contra a violação da sua «liberdade religiosa»;
Os agressores? Os dinamarqueses, em particular o autor do cartoon, o jornal que o publica e o Estado dinamarquês que não só deixa que o mesmo seja publicado como, pelo menos até à elaboração da citada declaração, deixou impunes os autores da heresia;

A própria natureza do texto escapou-me:
Será um texto jurídico e normativo? Sobre «o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que se professa»; ou
Teológico? Pois lá esclarece-se, em tom dogmático, que «Para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da sua Mãe, a Virgem Maria», «Para os muçulmanos um dos principais símbolos é a figura do Profeta Maomé»; e «as três religiões monoteístas (cristã, muçulmana e hebraica) descendem todas do mesmo profeta, Abraão»; ou
Histórico? «O que se passou recentemente nesta matéria em alguns países europeus é lamentável»; ou uma simples
Crítica de jornal, onde se «lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas»?

E em face de tantas lacunas gnoseológicas fui totalmente incapaz de atingir a teleologia da declaração:
Desde logo, por força das dúvidas relativas ao declarante e destinatários:
Por ex. se o autor for o dramaturgo será que está a fazer teatro? E se for o historiador? será que tem algum interesse em escrever história sobre a causa da «guerra das religiões» ou apenas dar o testemunho de uma estória exemplar? Mas mesmo que seja o subscritor (apenas numa ou na sua pluralidade de vestes não só de professor e jurista, mas também ministro, dramaturgo, historiador, activista política e crítico de arte) quem serão os destinatários e porquê: Os muçulmanos que estão indignados, pretendendo-se um discurso do tipo «ouçam bem quem ‘lamenta e discorda’», e acha que a vossa «liberdade religiosa» foi atingida, e que quem o fez e aceitou tal publicação é um... é um... é um... é um licencioso (eventualmente esse até será uma boa palavra de luta para aqueles cuja liberdade foi atingida, ainda que de uma forma caricatural, para ser utilizada nos seus ajuntamentos pacíficos (tipo, «dinamarqueses seus licenciosos»). Oh não será isso, sua excelência que tem uma reconhecida coragem (demonstrada em vários episódios que por vezes são esquecidos), não está propriamente preocupado com as vítimas dos licenciosos que viram atingida a sua liberdade religiosa mas com os bárbaros agressores da liberdade religiosa, os licenciosos dinamarqueses.
No fundo quer o texto seja atribuído à pessoa de quem o assina ou a Portugal em nome de quem é escrito: existe uma confluência de variações possíveis; sou(mos) europeu(s) mas não licencioso(s), discordo(amos) da publicação daqueles cartoons, etc, etc
E se o destinatário for a imprensa? O texto é uma orientação política para a análise da oficialmente designada «crise dos cartoons»? Ou uma advertência para futuro sobre a «discordância» quanto à «publicação» de certos cartoons e textos, e sobre a delimitação da liberdade. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas...

A falha de interpretação é tão plena que confesso que nem sequer interiorizei verdadeiramente a norma moral que tão generosamente me é oferecida «A liberdade sem limites não é liberdade, mas licenciosidade», pois se este não fosse um «blog decente» , e debalde o esforço de adequação do intérprete à seriedade do interpretado, se calhar não resistiria a, numa atitude algo licenciosa, concluir que talvez a declaração de S. Excelência o Sr. Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros não passe de um texto de ... reduzido interesse!

07 fevereiro 2006

 

Guerra de civilizações

Como era de esperar, as violentas manifestações no mundo islâmico contra as caricaturas de Maomé publicadas na Dinamarca foram "interpretadas" por alguns dos nossos comentadores de serviço como uma demonstração "incontestável" de uma guerra de civilizações, ou melhor, de uma guerra do islamismo contra a "verdadeira" civilização - a nossa. Os valores do islamismo, de que as manifestações de rua seriam a expressão, estariam em contradição irreconciliável com os "nossos" valores; concretamente, o desprezo pela liberdade de imprensa e a exigência de que nós a limitemos demonstraria em especial esse contraste de valores.
Este tipo de análise esquece várias coisas. Esquece que as liberdades estão em crise no "nosso Ocidente" e por culpa dos "nossos" governantes. Exemplos: Guantánamo, tortura de prisioneiros, escutas sem autorização judicial, prisões secretas, raptos na rua, detenções prolongadas sem controlo judicial, enfim toda a vasta panóplia de instrumentos de "combate ao terrorismo". Mesmo quanto à liberdade de imprensa, aparentemente intocada, lembremo-nos de que como ela foi limitada nos EUA durante a invasão do Iraque e como é sempre condicionada quando está em causa o "interesse nacional" (confundido com o interesse do executivo no poder).
A "nossa civilização" está sem grandes argumentos para contestar a "rua muçulmana".
É claro que poderemos dizer que os nossos governantes não exprimem devidamente os valores da nossa civilização. Mas quem garante que a "rua muçulmana" traduz rigorosamente os valores da civilização que invoca? Quem pode afirmar com rigor que o islamismo, enquanto "civilização", é incompatível com as liberdades?
A "rua muçulmana" que explode de raiva não exprime valores civilizacionais diferentes dos nossos; exprime e manifesta ressentimentos, frustrações, desespero e revolta por humilhações e feridas acumuladas ao longo de décadas, infligidas por colonizadores, "protectores", neocolonizadores, "civilizadores" que a ferro e fogo ali impuseram, não os "valores" que o "Ocidente" proclama, mas o domínio, o poder, a exploração dos povos e dos abundantes recursos naturais, geralmente em aliança com pequenos círculos de poderosos, tradicionais ou impostos de fora, chamados pelos "civilizadores" a partilharem o saque. Todas as tentativas de laicização e aggiornamento político no mundo árabe e muçulmano foram contrariadas ou sufocadas pelos "civilizadores", pois elas naturalmente conflituam com a exploração colonial ou semi-colonial imposta pelo "Ocidente". Afinal, quem é responsável pela falta de "tradição democrática" no mundo muçulmano?
Quanto ao "fanatismo religioso" direi o seguinte: a religião serve muitas vezes de berço, de regaço e de manto para os povos oprimidos. Os casos da Polónia e da Irlanda aí estão: o catolicismo ardente foi a bandeira de resistência nacional aos ocupantes estrangeiros. O islamismo desempenha actualmente a mesma função nos países muçulmanos e na diáspora. É neste quadro que deve ser compreendido o "fanatismo" que as imagens televisivas com tanta abundância exibem.

06 fevereiro 2006

 

Zelo a mais

Devo dizê-lo com toda a frontalidade: sou contra a tão (hoje) badalada "greve de zelo" nos tribunais. É um comportamento que só degrada ainda mais a imagem de magistrados e oficiais de justiça junto da população. Para nós, magistrados, o Governo não é o "nosso" patrão, nós não trabalhamos para o MJ ou para o Governo! Não temos que estar "motivados" ou "desmotivados", conforme o MJ sorria ou faça cara feia para nós. Nós não somos funcionários (mesmo os oficiais de justiça são, e eles tendem a esquecê-lo quando isso importa desvantagens, um corpo especial). Temos de assumir o nosso estatuto por inteiro. Assumir a condição de funcionários-burocratas, ainda que como forma de "luta", tem um custo demasiado alto. Quem não quer ser funcionário não veste "mangas de alpaca"! Se as veste, não se pode queixar...

 

Gandhi e a obesidade

Em tempos que já lá vão, a gordura, quase a obesidade, significava formosura… no feminino.
Era aquela beleza, ilustrada em pinturas célebres: mulheres gordas deitadas na relva ou, então, por ex. olhando-se deleitadamente ao espelho. Eram a delícia de um estético conceito de beleza para uma época.

Hoje já não é assim: a gordura leva rapidamente à obesidade, significando apenas doença (OMS 2005), não sendo sinónimo de riqueza, antes apontando para a pobreza (na medida em que são os mais pobres que “consomem os produtos mais baratos” com “teores de gordura e de açúcar mais elevados”). Pode contribuir para distúrbios psicossociais, isolamento social, rejeição social, discriminação no local de trabalho, dificuldades em arranjar emprego etc.

Quem ler o Jornal Oficial da União Europeia de 31/1/2006 (JO C 24, pp. 63-72) fica a conhecer o Parecer do CESE sobre a «Obesidade na Europa – papel e responsabilidades dos parceiros da sociedade civil».

Diz-se que hoje, no mundo, os dois maiores problemas nutricionais são, “por um lado, a fome que afecta 600 milhões de pessoas e, por outro, a obesidade, que atinge 310 milhões de pessoas”.

Como curiosidades salienta-se que, na Europa, “há 14 milhões de crianças com excesso de peso, das quais 3 milhões são obesas, verificando-se mais de 400.000 novos casos por ano, o que corresponde a 1 em cada 4 crianças na UE-25. 10-20% das crianças do Norte da Europa têm excesso de peso. No sul da Europa e na Irlanda, a percentagem é de 20-35%. (…) Os novos meios de comunicação social, incluindo os jogos de computador e a Internet, assumem crucial importância no que respeita aos jovens, particularmente porque a sua utilização está relacionada com o aumento da obesidade”.

Mas há mais: “Em diversos países da UE, mais de metade da população adulta tem excesso de peso, pertencendo 20-30% dos adultos à categoria dos obesos”.

E, depois, “a obesidade na meia idade aumenta o risco de demência futura. Os 6 dos 7 principais factores de risco de morte prematura estão relacionados com a forma como comemos, bebemos e nos movimentamos (o outro factor de risco é o tabaco). A obesidade é responsável por 2-7% das despesas totais dos cuidados de saúde nos países desenvolvidos”.

Esta «epidemia» pode ser combatida com diferentes abordagens, devidamente articuladas, impondo intervenções que, no parecer do CESE, devem incidir sobre o nível da educação alimentar e no incentivo da adopção de estilos de vida saudáveis, em particular no que respeita ao exercício físico.

A intenção é boa e claro que é preciso combater a obesidade, protegendo e promovendo a saúde pública.

O que sobrou para desincentivar a obesidade foi Gandhi (curiosamente citado pelo CESE):

«Se queres mudar o mundo, começa por ti»!

Quanto à política de desenvolvimento para acabar com os outros milhões que morrem de fome - o reverso da história – essa merece outra abordagem, sempre em tempo, uma vez que não está para breve o fim dessa “pandemia”.

Não podemos, contudo, deixar de lembrar a recente oferta (não aceite) a país africano de toneladas de biscoitos para cão, com sabor agradável, sob pretexto de serem altamente nutritivos para seres humanos…

 

Match Point

Às vezes não convém mesmo saber a verdade, nem tão pouco interessa aprofundar seja o que for, sequer as relações que se vão estabelecendo e mantendo ao longo de anos.
A vida vai deslizando, rolando ao sabor de uma artificial já natural defesa, necessária no dia a dia, para evitar surpresas que subtilmente podemos chamar de desagradáveis, aborrecidas ou incómodas.

Tudo se passa com uma aparente harmonia, como se todos «ganhassem» ou «perdessem», de uma forma indefinida, quase desinteressada, sem significado, mas compensatória mesmo em mundos diferentes.

Comportamentos socialmente correctos, polidos, acessíveis a qualquer pessoa, sabiamente representados, no aparente respeito das regras do jogo de cada grupo ou classe numa sociedade sem classes. Sim, mesmo no “grande-pequeno” circulo em que cada um se move, com muita ou pouca “sorte” pode encontrar pessoas que são assim mesmo, atraídas só pela vida social a que aspiram avidamente, sempre agradáveis, que encantam, seduzem, até ocorrer aquele «clic», consoante o «gosto» e a «exigência» de cada um…

É a natureza humana. A vida boa que deslumbra… quantas vezes reduzida ao plano material que atrai irresistivelmente… quer mesmo para quem nega a materialidade, quer para quem tem a ambição desmedida.

É o fascínio pela sociedade de consumo, pela visibilidade, pelas mordomias que se interiorizam e se vendem de tal modo que se tornam imprescindíveis, havendo sempre quem esteja disposto alcançar tudo isso a qualquer preço. Então, não há sentimento que resista, a não ser aquele que convenientemente serve os próprios interesses.

Tudo o que dá prazer é aceite, vivido intensamente, até se tornar inconveniente, altura em que inevitavelmente terá de ser eliminado para que a vida siga o seu rumo sem sobressaltos.

A humanidade é assim mesmo, feita de coisas boas e de coisas más, por vezes dependendo da habilidade e da perícia do jogador, como a bola que vai e vem, que às vezes toca na rede e, momentaneamente, não sabemos em que lado cai. Mas, o “acaso” acontece, a gravidade tem o seu peso e tudo parece «encaixar» para quem quiser viver sem se preocupar em aprofundar.

Match Point pode ser assim, no seu habilidoso argumento tão sedutor. É Woody Allen no seu melhor.

03 fevereiro 2006

 

Carta de uma profissional

A propósito do debate sobre a prostituição que se tem travado neste blogue, permito-me dar à estampa uma carta que me foi endereçada e que o Jornal de Notícias me fez chegar às mãos. Creio não ofender nenhum direito, até porque não me foi pedida reserva e, além disso, a subscritora da carta não está identificada a não ser com um nome que creio ser uma espécie de pseudónimo. Publico-a tal e qual, incluindo os imerecidos elogios e também os reparos muito oportunos que faz. Deixo o conteúdo à reflexão do leitor.




Ex.mo Senhor :

Costumo ler os seus artigos no Jornal de Notícias, como os de outros colunistas. Permita-me que lhe diga que os aprecio, até porque sendo de pequeno formato lêem-se num instante.
Há dias, o senhor escreveu um desses artigos em que falou, entre outras coisas, da prostituição, insurgindo-se contra uma tendência da sociedade actual para reprimir comportamentos ou modos de vida que fogem dos padrões da normalidade. O melhor, porém, será citar a passagem que achei mais interessante, uma vez que tenho o dito artigo, que se chama «Doença e desvio», na minha frente. Depois de afirmar que o exercício da prostituição não deve ser perseguido pelo Estado a não ser em casos em que estejam em causa valores fundamentais relacionados com tal exercício (não valores ligados a qualquer moralidade, evidentemente), o senhor escreve que se está a assistir a uma intolerância «em relação a práticas ou modos de vida que, sendo ou não viciosos, sendo ou não conformes às regras de qualquer política de saúde ou de qualquer sistema de moral (…) ultrapassam aquele limite em que os conflitos de interesses, bens ou direitos reclamam uma solução coactiva, para se imporem em nome de qualquer abstracto desígnio – o Bem, a Saúde, a Vida Virtuosa – de forma mais ou menos camuflada e justificando todo o tipo de perseguições e atropelos».
Ora, não posso estar mais de acordo consigo, mas antes de prosseguir permita-me que lhe chame a atenção para uma possível incorrecção: o senhor, quando escreveu «ultrapassam aquele limite» queria mesmo dizer isso, ou pretendia antes dizer «ficam aquém daquele limite»? É que, se os comportamentos a que o senhor se refere não têm idoneidade suficiente para desencadear uma solução coactiva, então é porque ficam aquém desse ponto e não além. Mas, por outro lado, desencadeando-se tal reacção coactiva sem que esteja verificado o condicionalismo adequado, ocorre um excesso, e daí provavelmente a solicitação inconsciente para o termo «ultrapassar». Terei razão? Bom, mas passemos adiante.
Como disse, estou inteiramente de acordo consigo no que se refere ao combate à prostituição. Uma coisa é a moral e outra, o direito. Devo dizer-lhe que exerço a prostituição, por inteira e livre opção minha. Tirei um curso superior, mas as opções de emprego que se me ofereciam não eram do meu agrado e, além disso, não me proporcionavam os rendimentos que eu ambicionava. Sempre desejei boa casa, bom carro, belas roupas e o acesso a uma multidão de coisas que a chamada «sociedade de consumo» proporciona, desde que se tenha o indispensável plafond. Foram, pois, razões económicas que me impeliram para esta vida, mas não razões estritamente económicas, não sei se me entende. Se quiser, foram razões ideológicas. Podia ter feito como outras que conheço: desencaminhar um indivíduo solidamente instalado, de preferência ultrapassando a meia idade, com boa profissão, com dinheiro, com estatuto, fazer-lhe um filho e, na melhor oportunidade, «dar às de vi lá Diogo» e apanhar-lhe parte da fortuna enquanto com ele vivesse e depois em nome do filho, ficando no fim com a casa de morada de família. Entre essa situação e a prostituição declarada, optei por esta. E devo dizer-lhe: não sinto o mínimo arrependimento.
Trabalho sozinha, não dependo de ninguém a não ser dos meus clientes, que me dou ao luxo de escolher, e ponho todo o empenho nessa actividade, esforçando-me ao máximo por proporcionar os melhores serviços, pois cultivo com esmero a ars erotica. Poderia talvez apelidar-se-me de libertina (uma palavra que tem uma conotação muito à século XVIII, a grande época da libertinagem e da literatura libertina), mas prefiro ser considerada uma profissional no verdadeiro sentido da palavra, isto é, alguém que sabe do métier e que não se envergonha de ser bem recompensado por isso.
Catherine Millet, a famosa chefe de redacção da revista artística «Art Press» que escreveu há poucos anos atrás «La Vie Sexuelle de Chaterine M.» (uma autobiografia), sendo uma libertina (ajustar-se-lhe-á esse apodo?) que procurava com fervor místico todas as vias do erotismo, confessa todavia que a sua única tentativa falhada foi a da prostituição, não obstante o fascínio exercido, como já é clássico, pelo personagem de Catherine Deneuve no também célebre filme «Belle de Jour», de Luís Buñuel. Isto porque não era capaz de criar distância em relação à pessoa do cliente que se lhe apresentava, através da montagem de uma encenação.
Ora, por minha banda, nada mais fácil. Sou como os advogados em relação às causas dos clientes, não se envolvendo emocionalmente nelas (coitados deles!), mas investindo nelas todo o saber profissional. Não entrego nada de mim, a não ser tudo o que em mim se reduz a um savoir faire. Vender o corpo? Ora! Ora! Ora! Patranhas de moralista! O que eu vendo são ilusões honestas e muito humanas, onde tudo está minuciosamente concebido para dar o máximo prazer ao cliente, desde a montagem de um décor intimista, até à ilusão de um envolvimento onde há um escrupuloso trabalho dos corpos, de que tenho de ser simultaneamente parte actuante e mestra, sem nunca perder o domínio inteiramente consciente da situação. É claro que daqui retiro prazer: o prazer do trabalho bem feito. Será condenável proporcionar prazer sexual a outrem a troco de dinheiro? Que diferença há entre proporcionar esse prazer e outras formas de prazer, igualmente a troco de dinheiro e às vezes mais condenáveis, embora totalmente lícitas? Há homens (estamos a falar da vertente feminina da prostituição) que nunca conheceriam o prazer sexual se não fosse o trabalho das profissionais. Não sei se sabe que há sexólogos que recorreram ao trabalho de profissionais para a cura dos seus doentes. Olhe, por exemplo, os Autores de «Os Prazeres do Sexo», ainda hoje um dos melhores manuais sobre a matéria, inteiramente liberto de concepções moralistas, os americanos Alex Comfort., M. B. e Ph. D.
Quanto àqueles que consideram as prostitutas necessariamente vítimas dos homens (uma versão moralista que se encobre numa pseudo-libertação da mulher) dão-me vontade de rir. Há mulheres que se dedicam à prostituição que são vítimas, sem dúvida nenhuma, desde aquelas que são forçadas a isso e mesmo violentadas, àquelas que o fazem por pura miséria. Uma coisa pode andar aliada à outra, mas não se confundam as situações: crime, compulsão da miséria e opção livremente escolhida. A menos que haja uns iluminados que queiram impor as suas concepções aos outros. E parece que há. Recorrem a vários subterfúgios: a dignidade humana, por exemplo. Que o exercício da prostituição implica sempre, dizem, uma limitação de direitos não consentida, porque contrária à dignidade humana. E que o homem que procura a prostituta exerce sempre uma violência sobe a mulher, justificando-se a sua perseguição criminal, como acontece na Suécia. Que Deus nos livre de tais guardiães da dignidade humana. Imagine o senhor que, segundo esses senhores, eu escolhi um caminho contrário à minha dignidade. E querem agora tutelar-me, como se fossem os meus anjos da guarda. Rejeito tal tutela e as asinhas seráficas desses senhores que procuram estender o seu manto protector sobre a minha pessoa. Lembrei-me do seu artigo e daquela parte dele em que o senhor fala de abstractos desígnios (eu diria sinistros) em nome dos quais querem agora submeter-nos à força aos seus cânones moralistas. Diga-me com franqueza: não lhe parece que esta pretensa dignidade humana é equivalente à Vida Virtuosa de que o senhor fala no seu artigo? E que é uma coisa verdadeiramente temível? Em suma: não acha que esta dignidade humana é uma indignidade?
Pois aqui lhe deixo a sugestão para novas reflexões em futuros artigos que muito prezaria que o senhor escrevesse no seu jornal. Chegue-lhes!

Aproveito para lhe renovar o meu apreço por aquilo que escreve e para lhe expressar os sentimentos da mais elevada

Consideração


Georgette

Segue-se um post scriptum, que me dispenso de reproduzir, até porque não tem interesse para o debate aqui em foco.

 

D. Carlos está vivo!

Anteontem, passavam 98 anos sobre o regicídio, realizou-se uma cerimónia na Praça do Comércio evocativa do acontecimento. Nela estiveram presentes 100 a 150 monárquicos ("uma pequena multidão", dizia o Público), "Suas Altezas Reais" e o Presidente da Câmara de Lisboa.
Ignora-se em que qualidade este último esteve presente: se como cidadão (e, ao que parece, monárquico!) se como presidente da edilidade. E também seria bom saber se estava autorizada a afixação de uma lápide sobre o evento histórico com os dizeres "morreram pela pátria", cujos direitos de autor pertencem a Cholokhov.
Mas o mais extraordinário foi a revelação que Carmona Rodrigues fez, dirigindo-se a "Suas Altezas Reais" e ao "povo" (o clero terá estado ausente), e que aqui fica à atenção de historiadores, órgãos de soberania (PR antes de mais), forças de segurança e povo em geral: «El-Rei D. Carlos continua vivo!». Cavaco Silva tem o lugar em perigo. Carmona Rodrigues, não. O ridículo, infelizmente, não mata.

 

Maomé bombista

Um desenho de Maomé com um turbante-bomba (bomba prestes a explodir) é insultuoso para os muçulmanos?
Tenho dificuldade em pronunciar-me sobre o assunto, até porque não sou muçulmano nem seguidor de outra religião. Mas quero lembrar a reacção que desencadeou nos meios católicos (ou em certos meios católicos, para ser mais rigoroso e não suscitar polémicas escusadas neste blogue!) aqui há anos no nosso país a caricatura de João Paulo II, assinada por António, com um preservativo enfiado no nariz. (E o Papa não é profeta...).
Como também não esqueço a indignação de muito "patriotas" (e Bagão Félix indignou-se há poucos dias) com o "abuso" do uso da bandeira nacional ou do hino, símbolos da Pátria!
Eu tenho uma visão muito liberal da liberdade de expressão e sempre a segui na minha vida profissional, nem sempre com sucesso nos tribunais. Propendo a pensar que a sátira deve ser livre, desde que se mantenha nos limites da sátira, da crítica, ainda que azeda, rude ou violenta. O direito de expressão só termina onde começa a injúria, a ofensa, a acção motivada pela intenção malévola de denegrir, de infamar, não de criticar. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (ou dos "direitos humanos", para não ofender as especialistas em "igualdade de género" - que especialidade será esta?) tem jurisprudência sólida nesta matéria, que deveria servir de "farol" à jurisprudência nacional.
Voltando ao Maomé, quid juris? Por mim, tudo bem, embora as caricaturas de Maomé me pareçam ter aparecido num momento inoportuno (tendo em conta a situação no Médio Oriente). Talvez essa inoportunidade não seja casual. Mas talvez a crítica e a sátira sejam sempre inoportunas. Em todo o caso, quem agora defende a legitimidade da publicação destes desenhos fica vinculado a tomar idêntica atitude quando for caso disso, isto é, quando os seus valores, a sua fé, forem visados. Então é que eu quero ver alguns dos (agora) liberais.

 

Tréplica

Meu caro João Paulo
Eu não quero desencadear uma tempestade ideológica sobre religião no nosso blogue, muito menos uma guerra religiosa! Eu sei que o catolicismo português é plural, hoje como ontem, no tempo da "outra senhora". Eu referia-me ao "catolicismo institucional", se assim posso dizer, e esse continua a ser geralmente tridentino. Reconheço, porém, que nos últimos anos apareceram na hierarquia da Igreja algumas figuras muito estimáveis, de cultura universalista e ideais humanistas. Tenho presente igualmente as posições e a acção da actual Comissão Justiça e Paz, presidida por Manuela Silva. (Mas também não me esqueço que a anterior foi dirigida por uma figura tão marcadamente alinhada à direita mais conservadora como Bagão Félix).
Também lhe quero dizer que, se a comparação entre o catolicismo holandês e o português é desfavorável a este último, o mesmo acontece se fizermos comparações entre outros segmentos da sociedade civil dos dois países. A cultura holandesa é por um lado "ferozmente" individualista e liberal, mas em contrapartida (direi melhor: em complemento) activamente tolerante e solidária. Era assim que eu gostava que o meu país fosse! (Digo "era", porque já não vai ser seguramente no "meu tempo").

02 fevereiro 2006

 

Execução da política criminal - um protocolo e algumas dúvidas


Certamente que o protocolo assinado a semana passada entre a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e a Polícia Judiciária não será indiferente ao novo quadro da política criminal, daí que o «workshop» tenha sido encerrado pelos ministros ministros de Estado e das Finanças e da Justiça (

 

Minas e armadilhas

O inquérito parlamentar ao caso Eurominas vai ser abreviado pela maioria parlamentar, como já era expectado.
As razões são simples: o parlamento não deve imiscuir-se na esfera de competência dos tribunais. Excelente princípio que se espera que venha a ser seguido sem excepções!
Enquanto o relatório final não vem, ficamos com uma ideia aproximada do que seria a actuação do MP se dependesse do executivo...

01 fevereiro 2006

 

Ainda a prostituição

O texto do dr. Pedro Vaz Patto obriga-me a uma resposta e é com muito gosto que o faço, porque é com o debate esclarecido que se esboçam soluções para os problemas.
No caso, trata-se de um problema sem solução à vista e por isso é preciso tratá-lo com muita cautela. Repudio em absoluto a ideia que legalizar a prostituição é "desistir", é considerá-la uma "fatalidade". Será assim onde constituir uma medida isolada, desacompanhada de intervenções de ordem social e concebida essencialmente como fonte de receitas, como indústria.
Não é essa obviamente a minha perspectiva, não é essa a política holandesa. A legalização, entendo-a como redução de danos (importo para aqui este conceito utilizado no mundo das drogas), isto é, como forma de minimizar os perigos, os riscos e os danos que a prática da prostituição produz necessariamente às (e aos) prostituta(o)s, aos "utentes" e à população em geral. E sempre no quadro de uma política social mais ampla, que circunscreva e reduza sempre o problema o mais possível, e que eduque para uma sexualidade livre e responsável.
Mas infelizmente a solução não é para amanhã nem para depois de amanhã.
Mas vejamos o que se passa na Holanda. A legalização da prostituição não impede o Estado nem a sociedade civil de "lutarem" o mais possível contra ela, por paradoxal que aparentemente isso pareça! Quer no plano da segurança social (Estado), quer no da solidariedade humana, prestada por associações laicas e religiosas (protestantes e católicas). Pessoalmente, tive oportunidade de visitar um centro católico de apoio a prostitutas. Era um grande barracão situado numa das zonas de exercício de prostituição. Tinha uma sala aquecida, um pequeno bar, sanitários. As prostitutas podiam vir ali aquecer-se, tomar uma bebida, descansar, conviver um pouco. Este apoio nocturno era complementado, se e quando as prostitutas quisessem, com assistência social, jurídica, etc., pela associação durante o dia e em local diverso. Não lhes pregavam moral, não as forçavam a entrar no "bom caminho": ajudavam-nas simplesmente, no que elas pediam, no que elas diziam precisar! Isto é que é solidariedade humana! Que diferença entre o catolicismo de lá e o de cá (desculpem-me os católicos de cá)!
Por maioria de razão me parece absurda, contraproducente e mesmo inconstitucional a "solução sueca". Remeto para o texto da Carmo Silva Dias de anteontem. O direito penal não é chamado para um problema destes. As demandas de criminalização nesta matéria defrontam-se irremediavelmente com o obstáculo da ausência de lesão de um bem jurídico. Estou a falar obviamente da prostituição de maiores e fora de situações de exploração ou tráfico. O direito penal, como tem sido dito e repetido por Figueiredo Dias, desde 1976, não é uma instância moral. Vale a pena ler, a este propósito, as considerações de J-M Silva Sánchez, La expansión del Derecho penal, 1ª ed., Civitas, pp. 46-55 (e desculpem a erudição!).
Por último, a questão da liberdade e da escravatura. Devo dizer que este termo é completamente desaquado à relação de prostituição. Esta baseia-se num contrato, livremente assumido pelas duas partes. Mas o escravo não contratava trabalhar para o seu senhor; era uma coisa sua, era objecto de um direito real. Fora violentamente degradado para tal situação, que não podia voluntariamente abandonar. Não brinquemos, pois, com as palavras.
É possível que 90 por cento ou mais das prostitutas, se pudessem, escolheriam outra profissão. Mas é igualmente possível que a grande maioria das pessoas, se pudessem, mudariam também de profissão. Se fosse para melhor.
Termino. Se na relação de prostituição se vende o corpo, noutras situações há quem venda a liberdade e há mesmo quem venda a alma. Tudo isso é eticamente condenável. Mas apenas eticamente. O direito não entra aí.
l

 

Teresa e Lena, um casal que o quer ser

A Teresa e a Lena querem casar-se. À partida, tudo normal. O problema é que querem casar-se uma com a outra. É esse o problema.
O Código Civil não o permite. Mas não será o CC inconstitucional nessa parte? Para que serve afinal o aditamento à parte final do nº 2 do art. 13º da Constituição ("...ou orientação sexual") aprovado na revisão de 1997?
Em parte alguma a Constituição define a "família" em termos tradicionais. O conceito constitucional de família não está prisioneiro desta ou daquela orientação ideológica ou religiosa, é um conceito aberto. É inútil invocar o nº 3 do art. 36º da Constituição para associar família e filhos. Era o que fazia o CC de 1966, na versão original, revogada com o 25 de Abril. Aliás nem mesmo esse diploma, de matriz ideológica claramente tridentina, negava o casamento aos casais inférteis. Os filhos não são obrigatórios. O casamento é uma forma de união entre duas pessoas que estabelece uma comunidade de vida baseada no afecto, no amor. E esses sentimentos não são exclusivo dos heterossexuais.
A Teresa e a Lena vão muito provavelmente ter que esperar. Não é crível que o conservador (palava sintomática!) as case. Elas vão recorrer dessa decisão e irão certamente até ao Tribunal Constitucional. Países há (e nisto os EUA são exemplares) onde é por via jurisdicional que muitos problemas deste tipo se resolvem. Tenho muitas dúvidas de que venha a ser esse o caso em Portugal...
E o que pensam os partidos? O BE e os Verdes são a favor da modificação do CC. O PCP, tudo o indica, também alinhará. O CDS, nem é preciso perguntar. Do PSD, dados os antecendentes em áreas afins, também não é de esperar outra coisa que não seja manter tudo como está. E o PS? Para este partido, a questão "não é prioritária". A Teresa e a Lena terão portanto, previsivelmente, de esperar que o tema entre nas prioridades do PS. Curiosamente, aqui ao lado, em Espanha, mal chegou ao poder, Zapatero incluiu a Espanha no ainda reduzido número de países que admite o casamento homossexual (não receando enfrentar as poderosas forças políticas e sociais que se lhe opunham). Enfim, uma concepção diferente de prioridades...
Em todo o caso, a corajosa atitude da Teresa e da Lena não é um acto inútil. Faz-se o caminho a andar...

 

Ainda a simetria

Exige-se que o Hamás renuncie à luta armada.
Mas já não se exige que Israel renuncie aos assassínios selectivos, à tortura de prisioneiros ("pressões físicas moderadas", na terminologia oficial) e às punições colectivas (demolição de casas, ataques indiscriminados).
Um caso evidente de assimetria.

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