15 janeiro 2006

 

Reflexões sobre a prostituição, a política e a justiça

Desde antes das férias que ando para atirar para este blogue umas duas ou três coisas suscitadas por reflexões alheias, mas, por um lado, os afazeres profissionais e as férias sobrevindas e, por outro, a preferência dada a outras ocupações, como pôr algumas leituras em dia (essa ambição permanentemente adiada) impediram-me de o fazer. As reflexões alheias a que me refiro têm a ver com duas notas do Maia Costa e também com um extenso texto do José, publicado há já bastante tempo na Grande Loja do Queijo Limiano sobre a geração de 60 e que constitui uma das mais demolidoras diatribes que tenho lido sobre essa «ínclita geração». Esta última reflexão, exigindo maior fôlego, ficará para mais tarde, se eu ainda tiver catadura para pegar nela. Quanto às reflexões do Maia Costa vou desde já comentá-las. E começo por dizer que, ao lê-las, tive a sensação de ele mas ter «roubado», pois dá-se a circunstância de eu até ter apontado num papel (um desses recibos do Multibanco, que à falta do celebrado «moleskine», dão mesmo jeito para meter ao bolso com o objectivo de servirem de repositório de ideias meteóricas que nos vêm à mente e que poderão servir ou não para posterior desenvolvimento) as ideias que ele veio depois a tratar em duas prosas publicadas neste blogue.
Uma delas diz respeito à questão da prostituição. Tal como Maia Costa, indigno-me com certas abordagens do tema e uma das minhas últimas crónicas jornalísticas - «Desvio e doença» - tocou de raspão essa problemática, de mistura com o tabaco e o álcool. São temas recorrentes onde uma intolerância de raiz moralista, mesmo no seio da esquerda (tão libertária!), em relação a comportamentos ou opções de vida pretensamente desviantes, intenta fazer convergir os comportamentos para uma ortodoxia cada vez mais uniformizadora ou normalizadora.
No que diz especificamente respeito à prostituição, arrepio-me com aquela retórica moralista que centra a questão na «venda do corpo» (mas a prostituta – façamos de conta que a prostituição é apenas feminina - vende realmente o corpo? E que porção dele é que vende? E ainda que o vendesse?) ou na escravidão da prostituta, como se não se pudesse conceber o exercício livre e até profissional da prostituição. Cada vez mais há um amplo sector da prostituição que se exerce sem ser por estritas necessidades económicas e se estas últimas subsistem ainda (e pelos vistos também cada vez mais) como factor de prostituição, então a solução está na adopção de uma política social e económica que acabe com elas. Além de que a prostituição tem muitas formas camufladas, mais ou menos legitimadas pela hipocrisia social, de se manifestar. A via da criminalização é que só pode conceber-se para aqueles casos muito estritos em que se perfile a exploração do negócio da prostituição ou esteja em causa a liberdade de autodeterminação das pessoas.
Uma solução à sueca é particularmente revoltante (pelo menos, eu assim acho), não só por clandestinizar e, no fundo, fazer recrudescer a prostituição, como principalmente por partir do princípio idiota de que o homem é o culpado e a mulher a vítima. Passei na Suécia uma temporada, há anos, em casa de amigos e tive tempo para me aperceber que, se o povo sueco é a muitos títulos digno de admiração, noutros não constitui nenhum exemplo a seguir. Uma das suas pechas é um paternalismo institucional (com uma versão puritana proveniente do protestantismo dos países do Norte) que por vezes raia o absurdo e ao qual o cidadão comum se acomoda passivamente. A legislação sobre a prostituição será um desses casos.

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A outra questão diz respeito às concepções que demonstram na área da justiça os candidatos à presidência da República, sobretudo os da esquerda. Na verdade, o panorama é deveras confrangedor. Mário Soares restringe todo o universo da justiça ao caso «Casa Pia». Quando lhe perguntam o que pensa sobre o sector, ele põe-se a falar inevitavelmente da «Casa Pia», das investigações mal conduzidas, do Procurador-Geral da República e, de caminho, vai tecendo comentários catastróficos sobre o Ministério Público. Agora, a propósito do recente e histericamente explorado episódio das listas de telefones pagos pelo Estado e pertencentes a uma verdadeira miscelânea de entidades públicas, lá o vimos a esbracejar num comício público contra as escutas telefónicas (o candidato confunde escutas com listas de chamadas) com que o inevitável (do ponto de vista discursivo, claro) processo «Casa Pia» enxameou o país inteiro. Um pretexto de ouro para falar das liberdades ameaçadas.
Quanto a Manuel Alegre, questionado sobre a justiça, despejou algumas ideias (se assim se lhes pode chamar) coladas à última hora antes do debate televisivo. Umas pinceladas sobre a área cível, outras pinceladas sobre a área criminal, uma laracha aqui, outra laracha acolá, e no fim o que ficou foi uma espécie de borrão atirado à parede com pincel grosso e desleixado. Não lhe era exigível que falasse do cível, do administrativo, do criminal, mas muito simplesmente que tivesse uma simples e clara ideia sobre a justiça, compatível com as funções de um presidente da República, mas foi o que faltou.
A propósito destes acontecimentos recentes, manifestou a sua incomodidade patriótica perante o que, do seu ponto de vista, seria a gota de água que fez transbordar o copo e, naquele seu jeito frontal, deixou escapar que demitiria o Procurador-Geral da República (se fosse, naturalmente, ele que mandasse). Uma demissão óbvia, pois claro!, a fazer lembrar aquele dito que ficou para a História de um outro candidato nos tempos da ditadura: «Obviamente, demito-o!» Nem uma palavra crítica (ou ao menos céptica) sobre o facto mediático que despoletou toda esta histeria manipulatória.
Garcia Pereira é o candidato assumidamente justiceiro. Esse, sim, candidata-se para pôr a justiça no seu lugar e para denunciar a perversão do sistema, a qual vem a traduzir-se no uso monstruoso dos poderes investigatórios do Ministério Público para fins de assassinato político. Acho que já tínhamos ouvido a formulação desse juízo, por assim dizer, cabalístico noutros sectores da esquerda não totalitária, o que prova que «les bons esprits se rencontrent». Garcia Pereira, agora com a auréola de professor doutor, lá vai difundindo a sua mensagem, tão poderosa quanto invariável, pelos vários sítios, esses sim, diferentes, por onde passa, e com isso vai dando o seu valioso contributo político, à esquerda, para a futura reforma da justiça, provavelmente no sentido de o Ministério Público deixar de instrumentalizar politicamente os processos para ser processualmente instrumentalizado pela política.
Na área da esquerda, só Jerónimo de Sousa apontou claramente a autonomia do Ministério Público como um objectivo impostergável e é dos candidatos que se tem revelado mais contido e menos asnático na área da justiça. Aí a sua posição é contrastante com aquela, manifestamente conservadora e moralista, que revela relativamente à prostituição.
E já repararam como, falando de justiça a propósito das presidenciais, a questão se resume praticamente ao processo Casa Pia, com este a reger as discussões de forma implícita ou explícita? Por que será? O processo Casa Pia é a metáfora ou a metonímia da justiça à portuguesa? A ruína da nossa justiça ou a ruína da nossa política? Ou ainda o reino do maquiavelismo de quem?





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