15 dezembro 2005

 

As palavras e os actos no espaço público

Tenho a impressão que os magistrados têm uma tendência fatal para o abismo. É uma impressão que venho solidificando há anos, baseada numa observação empírica do que se passa à minha volta. Em épocas de crise – e as crises só passaram a existir verdadeiramente de há dez anos a esta parte como expressões cíclicas de uma única crise que passou a ser omnipresente: a crise da justiça – os magistrados, em vez de minorarem os efeitos da crise, acentuam-nos. Actuam perfeitamente ao contrário daquilo que seria razoavelmente de esperar. É como se a situação de crise os entontecesse, ou criasse para eles uma zona de nevoeiro (para aplicar uma metáfora do filósofo José Gil) que os impedisse de ver com clareza o que está em causa e os levasse a um comportamento «gauche», às vezes mesmo grotesco, outras vezes simplesmente taralhouco, como o de uma mosca às voltas dentro de uma garrafa sem atinar com a saída. Em vez de terem uma percepção lúcida da estratégia a seguir para a saída da crise, mergulham nela cada vez mais, com uma espécie de fervor suicidário. São declarações para a comunicação social; são actuações processuais; são as mais diversas reacções individuais ou de grupo.
Na verdade, quer institucionalmente, quer sem ser de forma institucionalizada, os magistrados têm comportamentos públicos que não têm em mente a situação estrutural de crise da justiça e, dentro dela, a conjuntura específica em que são levados a agir. Habituados à posição recatada que recortava a figura do magistrado como um indivíduo isolado na «insularidade» da justiça e à intocabilidade que lhe advinha do prestígio das funções, os magistrados são, pelo menos, pouco hábeis (no sentido de não saberem avaliar os efeitos dos seus actos aos mais diversos níveis, desde o social ao mediático) e agem destrambelhadamente sobretudo quando são acossados pelos «media», produzindo declarações desconcertantes ou intervindo, mesmo ao nível processual, de uma forma que reflecte o seu tradicional e interiorizado isolacionismo social. O resultado é o que se tem visto tantas vezes: o de aprofundarem o fosso entre eles e os restantes cidadãos, entre o poder judicial e os restantes poderes, entre as instituições judiciárias e a comunidade.
Também há os que sentem a tentação de agir em conformidade com o que agora se designa de «politicamente correcto» e com a repercussão imaginária que os seus actos irão ter sobretudo na comunicação social. Também esses com frequência não prestam um bom serviço à justiça.
Com efeito, esses magistrados visam mais a sua imagem na comunicação social do que propriamente a imagem da justiça, fazendo coincidir aquilo que dizem ou fazem, ou a forma como reagem com o que é suposto (de um ponto de vista imaginário, claro) estar em conformidade com a representação social dominante em determinado momento acerca da justiça. Se criam uma dessintonia em relação à comunidade profissional a que pertencem, é mais com o fito no reconhecimento público, prestigiando-se a olhos leigos como singularidades desenvoltas e desempoeiradas que se destacam da pressuposta (também por eles) mediocridade reinante, e não com o primacial objectivo de melhorarem as instituições que servem. Problema maior do que este, porém, é quando este protagonismo se transporta para o interior da actividade profissional, reflectindo-se no exercício das funções. E se tal projecção protagonista pode não contender de forma essencial com a justeza das suas posições e decisões, a verdade é que ás vezes basta um ligeiro excesso na linguagem, um pequeno resvalamento para afirmações acessórias ou uma maior agressividade no tom para dar um contributo decisivo para o naufrágio em que acabaremos por perder-nos todos.





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